O professor de criação literária Stephen Koch escreveu, no seu livro Oficina de escritores: Um manual para a arte da ficção, que “o vínculo íntimo entre ficção e não-ficção é quase tão antigo quanto a literatura”
Pode-se dizer que a nossa convidada de hoje também reconhece esse fato. Mais do que isso, ela se alimenta desse fato para escrever. Por falar em fato, na nossa conversa, falamos sobre as relações entre fato e ficção.
Anna Maria Mello (@anna.escritora) é autora do romance Montanhas de Diana (Quelônio, 2024 @editoraquelonio) que mostra as memórias e desafios de uma mulher que precisa enfrentar um câncer de mama.
Na conversa que tive com ela, falamos sobre o so da memória como recurso literário, diferença entre realidade e ficção na escrita, formação acadêmica e oficinas literárias e sobre muito mais.
Vale ler até o final.
O recurso da memória é muito presente no seu romance Montanhas de Diana. Qual a importância da memória para a sua escrita literária?
O processo de criação de cada livro é um livro. Esse foi pensado nesse formato, trazendo essa memória da personagem da infância e da adolescência, da criação do corpo feminino, dos seios dela que vão crescendo, das coisas que ela sofreu também, violências contra o corpo feminino — tudo isso para desencadear o momento presente, que é o câncer.

Associei a momentos de memória mais light, para amenizar um pouco a escrita. Esses flashbacks vêm como uma técnica para tirar o leitor do tempo presente, que é um tempo de tensão, onde ela está doente e internada. Então, vêm como um recurso literário essas memórias.
Como você enxerga a relação entre memória e ficção?
A memória também é uma ficção, porque é o ponto de vista. Pode beirar o real, mas é o ponto de vista do autor que transforma em ficção. Para mim, a memória é um recurso que a gente utiliza para escrever a ficção, mas ela não tem nada a ver com a realidade, porque já é transformada.
“A memória é um recurso que a gente utiliza para escrever a ficção, mas ela não tem nada a ver com a realidade, porque já é transformada.”
Anna Maria Mello
Montanhas de Diana é uma autoficção? Fale um pouco sobre isso.
Sim, é uma autoficção. Eu tive câncer, tenho duas filhas, tive amigas que me ajudaram, e muitas passagens são reais da minha história. Mas também há partes ficcionais.

Foi baseado em fatos reais, mas também tive muito contato com pessoas que tiveram câncer. Sou ativista na causa. Coleti dados para formar o livro. Não é só a minha história, é a história de muitas Dianas. As amigas são personagens ficcionais. Os nomes também. Minhas filhas não são como descrevi. Tem partes baseadas na minha história e outras que são ficcionais ou baseadas em outras histórias.
Diana, na mitologia romana, é a deusa da lua, da caça, da natureza selvagem e dos animais. Ela também é associada ao parto, à fertilidade e à proteção das mulheres. Como foi o processo de dar o nome ao seu romance Montanhas de Diana?
O nome da personagem foi a última coisa que coloquei, porque queria algo muito bem pensado. Diana é parte do meu nome. Isso mistura ficção e realidade. Sou historiadora, fiz um curso na USP sobre mitologia, sou muito ligada à mitologia grega. Gosto muito particularmente, e acho um nome forte, que carrega força. A personagem precisava de um nome assim.
Diana, a personagem central, sendo mãe de duas meninas, se vê entre dois desafios: se cuidar para se recuperar do câncer de mama e cuidar das filhas. Qual você acha que é o maior desafio de uma mãe hoje?
É muito difícil se cuidar e ter filhas nesse momento, ainda mais sem um pai presente. Muitas Dianas por aí não têm suporte familiar. Às vezes o marido larga, ou não há pai. Precisa de uma rede de apoio.

A personagem vai para a casa do pai biológico. Minha filha, na época, tinha 15 anos e foi morar com o pai porque eu não estava conseguindo lidar com tudo. Escrevi um livro infantil chamado Cabelos vão, cabelos vêm: o que é que a mamãe tem?, para contar aos filhos que a mãe está doente. Esse livro foi um best-seller e até hoje dou para muitas mães.
A literatura pode ajudar a se identificar com a personagem. Muitas mães cuidam dos filhos e esquecem de si. A personagem trabalhava muito e acabou adoecendo. Às vezes a mulher não faz exame, não faz mamografia após os 40 anos, ou ultrassom a partir dos 35 se houver histórico familiar. Se pegar no início, é mais fácil. No estágio intermediário, como foi o caso da Diana, o tratamento é mais pesado. Por mais que se seja mãe, é preciso se cuidar, independente de tudo.
“Sempre fui uma excelente leitora desde a infância. A escrita nasceu da leitura.”
Anna Maria Mello
Você é ativista pela causa do câncer de mama. Como a experiência como ativista influenciou na escrita do seu livro?
Sim, sou ativista. Vi muitas realidades. Me envolvi com pessoas de todos os níveis sociais. É uma doença que nivela as pessoas.
Vi uma menina com 25 anos, de família riquíssima, com câncer agressivo. Mesmo com recursos, sofreu muito, ficou estéreo, perdeu o cabelo, o namorado a deixou. Também frequentei o SUS, participei de grupos com pessoas com câncer. Às vezes falta até sabonete para o pós-operatório. Eu mesma perdi dentes com o tratamento. O corpo muda: é o dente, a mama, os cabelos, a sobrancelha. A mulher deixa de se reconhecer.
Por isso, essa questão do corpo está presente no livro. Ser ativista me influenciou muito. Fiz pesquisa com mulheres. Essa não é só a minha história — é a história de todas essas mulheres e de suas famílias.
Eu queria que fosse um livro de muitas Dianas, guerreiras, pessoas que lutam contra essa doença. Que esse livro sirva para que outras mulheres se identifiquem com a personagem e tenham força para lutar.
Você fez a Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz e a Oficina de Criação Literária com o professor e escritor Assis Brasil. Qual foi o seu maior aprendizado no estudo da escrita literária?

Além da Formação de Escritores e da Oficina, fiz mestrado em crítica literária na PUC e estou finalizando o doutorado. Toda essa formação influencia na escrita com técnicas de fluidez e intertextualidade.
Leio muito, praticamente todos os dias. Sempre fui uma excelente leitora desde a infância, e isso me deu facilidade com a escrita.
Esse livro teve um processo de criação diferente. Havia um personagem masculino que retirei na última hora porque achei que tirava a força da protagonista. A última versão foi muito trabalhada.
Tenho um processo de criação e técnica de escrita para cada livro. Hoje penso muito bem nos personagens e nas suas reações. Estudo personagem filosoficamente, trago Bakhtin, intertextualidade, e outros recursos que vêm das minhas formações. Já estou com novos projetos em andamento, com outros processos de criação, que não têm relação com autoficção.
Entrevista realizada por Paulo Henrique Passos do site Caixa Preta Entrevista, em 13/06/2025
Caixa-preta é um site de entrevista com escritores e escritoras.
E sendo caixa-preta “qualquer sistema, organismo, função, etc., cujo funcionamento ou modo de operação não é claro ou está envolto em mistério”, representa uma ideia que se aproxima da literatura.