Quando a professora Martha viu Helena, naquela manhã, soube de tudo. Helena estava saindo do banheiro, apertando a mochila contra a barriga, olhos vermelhos esbugalhados. Martha chamou: – ei, ei, onde vai? Ela ignorou, passou pela professora como um foguete em direção à porta de saída. Naquele dia fazia dois meses que Martha começara a dar aula de português para Helena.
Martha tinha acabado de mudar para São Paulo. Veio fugida da família. Melhor recomeçar a vida na cidade grande. Há semanas estava preocupada com Helena. A blusa de mangas compridas escondia algo. As pernas estavam marcadas por roxos que se destacavam na sua pele clara. Helena, naquela manhã, tinha sido ridicularizada pelos amigos de classe. Eles a achavam estranha. Sempre quieta, não aceitava convite de ninguém. Muito menos para festinhas. Martha queria dar-lhe colo, abraçá-la, mas tudo que conseguiu foi perguntar se ela estava bem. Helena encontrava-se longe demais para ouvi-la. A professora correu e a segurou pelos braços.
– Ai. Ai!
Martha viu o medo nos olhos de Helena. Precisava fazer algo. Perguntou se a garota queria ir para sua casa. Ela aceitou o convite, balançando a cabeça. Deixou-a tomar um banho e adormecer em sua cama. Sabia que Helena precisava descansar. Uma hora mais tarde, quando corrigia provas na sala, ouviu barulhos na cozinha. Lá estava ela, com um beiço deste tamanho, olhar desesperançado e um copo de água na mão. Martha pediu desculpas por não impedir os insultos dos colegas durante a aula. Ainda era inexperiente em apartar brigas. Helena sentou no chão, encolhendo as pernas, dobrou os joelhos e apertou -os contra o ventre.
Martha se acomodou ao seu lado. Ali, naquele momento, não era mais sua professora. Chegou mais perto, mas não perto o suficiente para tocar em Helena. Por alguns minutos, se olharam, Helena desatou a falar. Contou que tinha um esconderijo onde trancava a respiração. O silêncio e a escuridão lhe traziam paz. Jamais entrava no abrigo sem necessidade. Lá tinha construído um local secreto. Improvisado. Levou sua boneca preferida; uma vela, que nunca acendia por medo de ser descoberta; e o terço que tinha ganhado de sua avó na primeira comunhão, meses antes de sua morte. Ela contou que esse local era apertado, impossível de se manter de pé. O teto do guarda-roupas era enviesado. Prateleiras cheias de farpas pendiam sobre a cabeça de Helena. Gostava do efeito das luzes que atravessavam as frestas da porta. Isso acontecia quando o lobo ligava a luminária do corredor. Sinal de que estava com fome. Se ele a pegasse, doeria demais. Certo dia, quando sua mãe saiu para trabalhar, ele colocou Helena no colo e contou uma história. A do lobo.
Até aquele instante Helena acreditava em contos de fadas. Por três vezes, escapou. Mas um dia ele ficou voraz e a machucou. Batia, se ela tentasse se desvencilhar. Helena contou das vezes que o lobo, com seus pelos fedorentos e suados, a pegava até melarem suas meias brancas. Depois que ele saía de cima dela, ela vomitava, como se aquilo aliviasse algo. Depois que ele a pegou no chão do quarto, no dia do nono aniversário dela, disse ser aquele seu presente inesquecível. Ela nunca mais chorou. Foi depois desse dia que descobriu o armário.
No mês passado a mãe inventou de fazer uma arrumação. Destruiu o esconderijo. Perguntou o porquê da boneca preferida, da vela e do terço estarem ali. Helena não teve coragem de dizer. Sabia que o lobo estava por perto com seu sorriso.
Martha já tinha ouvido o bastante. Resolveu esquentar uma pizza. Melhor falar sobre outra coisa. No dia seguinte ajudaria Helena a pôr um ponto final. Martha sabia bem o que Helena estava passando. Também havia conhecido um lobo na infância.
Por Anna Maria Mello
Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente. Paulistana, desde 2015 se dedica à literatura. Pós-graduada em Escrita Literária pelo Instituto Vera Cruz. É autora de três livros. Formada em História pela USP, Atualmente, mestranda da PUCSP em Crítica Literária. As letras transformaram sua vida e abriram novos caminhos.