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Contos

Uma carta sem resposta

Uma carta sem resposta

Para Bertha que sempre será querida.

Não escrevo para lhe pedir perdão, mas para perdoar a mim mesma. Um dia se propuser a lê-la, talvez surpreenda com minhas confissões .O que cabe à mim é esse momento da escrita, o que vem depois não me interessa. Na ocasião do rompimento de nossa amizade, buscava no Diego, algo que faltava em mim. Nada me satisfazia, ao ponto de não discernir o que era certo. Havia me transformado em alguém obcecada por reconstruir uma família .Sabe daquelas de contos de fada.

Na época que nos conhecemos erámos muito parecidas, ambas recém separadas, o que queríamos eram momentos de distração. O objetivo era qualquer coisa que nos tirasse da rotina. Complementávamos como, cama e cobertor, vaso e flor, vestido decotado e peitos abundantes. Seus gostos se tornaram os meus, sua casa era a minha e a minha a sua, tínhamos uma a outra, como irmãs gêmeas ligadas a mesma placenta. Acreditava que nunca iriamos nos separar. Erámos o sagrado como mães, protegíamos ferozes nossos lares,e o profano nos labirintos das madrugadas. Aos poucos, independente de nossos parceiros, criamos uma cumplicidade. Trocávamos confidencias e falávamos de outras pessoas como se focemos o centro do universo. Eu mais do que você. Naquela época antes de atender seus telefonemas já sabia que era hora da fofoca.Com o passar dos anos fui perdendo a alegria e o desejo da diversão. Não fui honesta para lhe dizer, o que se passava comigo. Naquele momento o medo de perdê-la era maior. Na carreira, escolhas do passado assombravam. Amargurava ter sido abandonada por pais biológicos Dizia estar bem, quando perguntava a respeito. Com a morte da mãe que me criou, a situação agravou. Rompeu-se o elo que unia minha irmã, marido e família. Apesar de você não tê-la conhecido, era para mim o reflexo distorcido desse elo, Formou-se um paradoxo. O vazio transformou meus dias em um tapete eu uma cópia barata de Penelope. Sobre isso nunca falei. Queria transparecer leve, descongestionada, enquanto nas veias o sangue cristaliza. Criou-se um espaço onde Diego pode me puxar para além da correnteza em um mar que a tempo vinha engolindo água me deixando ser tragada até naufragar.

O traço de minha escrita é o resultado dessas veias. Nesse momento que assino, já não pertenço ao corpo que compartilha as nossas lembranças. A cada palavra os contornos das letras pulsão expurgando o não dito. O corpo dobra-se sobre o papel como se quisesse depositar sobre ele o peso do tempo que não volta mais. E a ele só cabe a memória.

São Paulo, 20 de novembro de 2015.

Por Anna Maria Mello

Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente. Paulistana, desde 2015 se dedica à literatura. Pós-graduada em Escrita Literária pelo Instituto Vera Cruz. É autora de três livros. Formada em História pela USP, Atualmente, mestranda da PUCSP em Crítica Literária. As letras transformaram sua vida e abriram novos caminhos.

Um nome qualquer

Poderia se chamar Júlia, Laura, Luísa, qualquer um desses nomes comuns que se repetem na lista de presença do colégio. Chamava-se Vanessa. Soava mal aos ouvidos, e isso a irritava. Uma vez ouviu que Vanessa parecia nome de puta, dessas que põem nome falso na internet. Retrucou, apesar de ser uma daquelas garotas de pouca fala, de cara esbranquiçada por nunca tomar sol. Nos dias nublados, os ventos vindos do mar eram a única coisa que lhe trazia paz. Ainda bem que morava perto da praia. Não parecia muito inteligente, nem boba demais. Apesar de os colegas a verem todos os dias no colégio, em outro lugar era possível que não a reconhecessem. Tampouco suas roupas se destacavam. Sempre vestia uma camiseta, que poderia ser a mesma, e um jeans, daqueles que nem rasgo tinham. As notas serviam só para passar de ano. Ninguém sentia sua ausência.

Em casa, as brigas entre seus pais eram uma constante. Vanessa não se importava mais com os conflitos do casal. Refugiava-se em seu quarto e isso lhe bastava. A mãe havia desistido de fazê-la comer. Apesar de estar magra demais e de sua aparência cadavérica. O pai chegava sempre depois das dez horas da noite, sequer percebia que ela há dias não se sentava à mesa do jantar.

Até que em uma manhã, durante a aula de Literatura, enquanto a professora lia um trecho de o Alienista, Vanessa caiu no chão, rígida, com os braços colados ao dorso, pernas trepidantes, olhos revirados. Uma espuma lhe saia pela boca. Uma das colegas veio depressa em sua direção.

– Segura a língua dela – gritou Luísa.

– O que é tá rolando? – berrou Helena.

– Ela desmaiou. – respondeu Edu.

Luísa afastou as amigas com os braços. A professora tentou acalmar a classe. Em seguida, correu em direção a Vanessa. Segurou firme sua cabeça, apoiando-a em uma mão; com a outra, agarrou a língua. A professora pediu ajuda. Mandou um aluno correr na enfermaria. Não foi necessário. A gritaria chamou a atenção da enfermeira, que logo apareceu. Um resto de baba escorreu pelo canto da boca e molhou a gola da camiseta de Vanessa. A enfermeira levantou a cabeça da menina pela nuca, enquanto a professora limpava sua baba. Alguns segundos depois, o corpo já estava relaxado sobre o chão. Aos poucos, ela voltou a respirar. O ar com odor desagradável embrulhou o estômago de Vanessa e a deixou mais pálida do que antes.

– Melhor avisar os pais, temos que levá-la ao hospital – disse a professora.

Vanessa, ainda tonta, percebeu que a professora estava ao seu lado. A ambulância demorou a chegar. Saiu da sala amparada pela professora e pela enfermeira do colégio. As duas ajudaram a coloca-la em uma maca, enquanto o enfermeiro da ambulância tomava a frente da situação. Vanessa, meio tonta, já deitada na maca, apertou o anel de pedra que tinha ganho de seu pai nos seus quinze anos, recém feitos. Apertou tanto que chegou a roxear o anelar.

No hospital, uma outra enfermeira entrou no quarto. Dependurou uma medicação em um suporte ao lado. Uma picada no braço direito fez com que Vanessa despertasse, uma lágrima escorreu pelo seu rosto, odiava picadas. A lembrança da queda lhe veio à cabeça. Parecia real. A marca roxa do anel no anelar confirmou.

A mãe já estava no quarto. Sentada no sofá de pernas cruzadas, segurava o celular em uma das mãos, como algo precioso. Vanessa a ouviu pedir um horário para fazer as mãos e o cabelo, precisava fazer uma hidratação. Virou para o lado, fez careta, procurou pelo pai, deveria estar ocupado demais no trabalho.

Vanessa nunca tinha percebido como a voz de sua mãe a irritava. O lençol áspero lhe causou arrepio. Olhou para suas mãos, viu o roxo do anelar, desta vez sem o anel. A mãe desligou o telefone, foi até o banheiro, devia estar retocando a maquiagem.

Na frente da cama, um quadro dizia “Alto risco de queda”. Logo abaixo, aquele seu nome. E o sobrenome.

Por Anna Maria Mello

Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente. Paulistana, desde 2015 se dedica à literatura. Pós-graduada em Escrita Literária pelo Instituto Vera Cruz. É autora de três livros. Formada em História pela USP, Atualmente, mestranda da PUCSP em Crítica Literária. As letras transformaram sua vida e abriram novos caminhos.

O Lobo

silhouette dog on landscape against romantic sky at sunset

Quando a professora Martha viu Helena, naquela manhã, soube de tudo. Helena estava saindo do banheiro, apertando a mochila contra a barriga, olhos vermelhos esbugalhados. Martha chamou: – ei, ei, onde vai? Ela ignorou, passou pela professora como um foguete em direção à porta de saída. Naquele dia fazia dois meses que Martha começara a dar aula de português para Helena.

Martha tinha acabado de mudar para São Paulo. Veio fugida da família. Melhor recomeçar a vida na cidade grande. Há semanas estava preocupada com Helena. A blusa de mangas compridas escondia algo. As pernas estavam marcadas por roxos que se destacavam na sua pele clara. Helena, naquela manhã, tinha sido ridicularizada pelos amigos de classe. Eles a achavam estranha. Sempre quieta, não aceitava convite de ninguém. Muito menos para festinhas. Martha queria dar-lhe colo, abraçá-la, mas tudo que conseguiu foi perguntar se ela estava bem.   Helena encontrava-se longe demais para ouvi-la. A professora correu e a segurou pelos braços.

– Ai. Ai!

Martha viu o medo nos olhos de Helena. Precisava fazer algo. Perguntou se a garota queria ir para sua casa. Ela aceitou o convite, balançando a cabeça. Deixou-a tomar um banho e adormecer em sua cama. Sabia que Helena precisava descansar. Uma hora mais tarde, quando corrigia provas na sala, ouviu barulhos na cozinha. Lá estava ela, com um beiço deste tamanho, olhar desesperançado e um copo de água na mão. Martha pediu desculpas por não impedir os insultos dos colegas durante a aula. Ainda era inexperiente em apartar brigas. Helena sentou no chão, encolhendo as pernas, dobrou os joelhos e apertou -os contra o ventre.

Martha se acomodou ao seu lado. Ali, naquele momento, não era mais sua professora. Chegou mais perto, mas não perto o suficiente para tocar em Helena. Por alguns minutos, se olharam, Helena desatou a falar. Contou que tinha um esconderijo onde trancava a respiração. O silêncio e a escuridão lhe traziam paz. Jamais entrava no abrigo sem necessidade. Lá tinha construído um local secreto. Improvisado. Levou sua boneca preferida; uma vela, que nunca acendia por medo de ser descoberta; e o terço que tinha ganhado de sua avó na primeira comunhão, meses antes de sua morte. Ela contou que esse local era apertado, impossível de se manter de pé. O teto do guarda-roupas era enviesado. Prateleiras cheias de farpas pendiam sobre a cabeça de Helena. Gostava do efeito das luzes que atravessavam as frestas da porta. Isso acontecia quando o lobo ligava a luminária do corredor. Sinal de que estava com fome. Se ele a pegasse, doeria demais. Certo dia, quando sua mãe saiu para trabalhar, ele colocou Helena no colo e contou uma história. A do lobo.

Até aquele instante Helena acreditava em contos de fadas. Por três vezes, escapou. Mas um dia ele ficou voraz e a machucou. Batia, se ela tentasse se desvencilhar. Helena contou das vezes que o lobo, com seus pelos fedorentos e suados, a pegava até melarem suas meias brancas. Depois que ele saía de cima dela, ela vomitava, como se aquilo aliviasse algo. Depois que ele a pegou no chão do quarto, no dia do nono aniversário dela, disse ser aquele seu presente inesquecível. Ela nunca mais chorou. Foi depois desse dia que descobriu o armário.

No mês passado a mãe inventou de fazer uma arrumação. Destruiu o esconderijo. Perguntou o porquê da boneca preferida, da vela e do terço estarem ali. Helena não teve coragem de dizer. Sabia que o lobo estava por perto com seu sorriso.

Martha já tinha ouvido o bastante. Resolveu esquentar uma pizza. Melhor falar sobre outra coisa. No dia seguinte ajudaria Helena a pôr um ponto final. Martha sabia bem o que Helena estava passando. Também havia conhecido um lobo na infância.

Por Anna Maria Mello

Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente. Paulistana, desde 2015 se dedica à literatura. Pós-graduada em Escrita Literária pelo Instituto Vera Cruz. É autora de três livros. Formada em História pela USP, Atualmente, mestranda da PUCSP em Crítica Literária. As letras transformaram sua vida e abriram novos caminhos.

Lua cheia

O cheiro azedo dos grãos que cobriam a grama em volta dos pés de café se misturava às folhas secas de outono. O vento frio emaranhava os fios de cabelo de Lua, tirando-a de seus pensamentos. Montada em Ventania, cavalgou até a sede da fazenda, de onde avistava o portão de entrada, na esperança de ver as marcas dos pneus da caminhonete de Leonardo, ausente há mais de uma semana.

Quando ainda não se podia distinguir entre o fim do verão e o início da próxima estação, Leonardo se juntou a Alcides, o administrador, que decidiu levar o filho com ele em uma viagem de negócios que resultaria na compra de 30 cabeças de gado Nelori para iniciar a criação da raça nas terras da Ouro Verde.

O vento aumentava com o passar dos dias e Lua, sem notícias, procurava se entreter com os afazeres de casa, evitando as caminhadas matinais que a deixavam mais ansiosa e sem resposta para a ausência prolongada do marido. As semanas atropelavam os dias e Lua se mantinha firme, com expectativas que passavam pela possibilidade de um acidente durante a vigem de Leonardo até uma partida sem volta. 

Nada de gado, nada de Leonardo. Somente as folhas que pelavam as árvores, deixando que o vento circulasse entre os pés de café, na entressafra que anunciava a chegada do inverno. Lua chorou. A sensação era de medo, fracasso, impotência. Duas estações se seguiram e Lua continuava imóvel diante de mais uma aventura de Léo, que podia levar uma semana, meses ou ano. 

A espera por notícias paralisou Lua. Até que o trotar de um cavalo foi ficando mais próximo, passou pela porteira da fazenda e um cavaleiro desceu do animal, amarrou-o no tronco ao lado da porta de entrada da sede e tocou o sino para chamar quem lá estivesse.

Lua, ao escutar o som agudo do sino, fechou a porta do fogão onde a lenha queimava há mais de uma hora e correu para a porta na esperança de notícias. Com suor na testa, as mãos frias, Lua girou a maçaneta de ferro da porta de madeira maciça da sala de estar e  tropeçou em um desconhecido que a encarou, sem mexer os lábios por minutos a fio.

Nas mãos do homem sem voz um papel dobrado, entregue a Lua. Com a missão cumprida, o cavaleiro desconhecido andou até o tronco, com passos largos, desamarrou o animal e partiu sem explicações.

Lua, com o bilhete nas mãos, atravessou a sala de estar, foi até a cozinha e, com o ruído da madeira estalando no fogão, desdobrou o papel e reconheceu a letra de Leonardo. Duas linhas, lidas sem pausa, diziam: gado comprado, quando a lua cheia der espaço para a escuridão das noites frias, você vai ouvir as passadas da boiada chegando e muita história pra contar. Lua sorriu e a cinza do fogão ainda quente representou a chegada de uma nova estação e de um recomeço.

Por Sofia Mathias

A estátua

Em meio a uma nuvem de poeira que vinha do Sul, a silhueta fina da moça cuidava para não se misturar à ventania que carregava as folhas espalhadas pelo chão da praça. Os bancos de mármore, cenário de casais apaixonados, mães observando seus filhos a brincar nos canteiros, agora sem flor. O lago, inspiração de pintores, poetas e sonhadores, hoje é um lamaçal coberto de mato resistente a pisadas de ratos noturnos povoando o vazio. 

O ir e vir de pedestres apressados cruzando caminhos, atrasados para o trabalho, indo para a escola, buscando a sombra das árvores frutíferas que serviam de pano de fundo eram lembranças. 

 Agora, apenas uma mulher, braços entrelaçados, cabeça baixa, coberta pelo pó. Imóvel, como que assistindo ao que foi, um dia. A estátua, objeto de fotos amadoras, embora, em parte, destruída, encarava a moça estática como ela. A destruição de ambas era visível. A estátua em cacos, apenas um olho no rosto e uma mulher ensaiando dar alguns passos em direção ao banco de mármore se entreolhavam. 

A moça de cabelos soltos arriscou pôr um pé adiante do outro. Movimento que fez rolar uma gota do olho da estátua. O vento cedeu lugar a uma garoa fina que impulsionou os passos da mulher de olhos opacos, desviando o encontro do olhar com uma estátua em pedaços, que resistia ao tempo. 

Os passos da moça descalça foram se tornando mais ousados. O caminho até a obra de arte da praça, hoje ferro velho, arrancou dela um sorriso. O passado trouxe consigo lembranças de um tempo de cheiros de frutas, flores de espécies raras, beijos roubados, discursos indecifráveis, mãos que se agarravam ao som de um trio de cordas. A chuva apertou. A moça, na praça, quase alcançava a estátua. Estava muito próxima. Agora eram as duas que sorriam. O ferro esverdeado do corpo da estátua jazia no chão de barro da praça.

A moça, cada vez mais próxima, começou a catar os cacos pelo chão, os seus e os da estátua. Mais uma vez, os olhares se cruzaram. A moça sentou no banco. Com as mãos apoiadas no mármore, guardou os cacos no lenço que trazia no pescoço. Sensação de frio nos pés e na alma. Era hora do acerto de contas. A estátua sabia demais. Mesmo destruída, restava um olho, o mesmo que havia assistido aos seus segredos. Tantos e todos, em 40 dias e noites de confissões em silêncio. A moça se apressou. Precisava acabar com o sofrimento, o seu e o da estátua. Olhou em volta. A poeira agora se juntava à lama do chão. Os pés cobertos de terra buscavam apoio para escalar a estátua. Era o momento certo de prestar contas a si mesma. Não importava o que a estátua pudesse pensar. Ela sabia demais. A moça, com um pedaço de ferro encontrado no chão da praça, alcançou o rosto da estátua, o que restou dele. Num ímpeto, lançou o ferro em direção ao olho da estátua. O barulho de um ferro tocando no outro foi o único som ouvido. Os pedaços de ferro foram se espalhando a seus pés. Não havia mais olho, nem testemunha de um passado que devia ser esquecido. A morte da estátua, aos olhos da moça, que deu as costas, acelerou seus passos, deixando no caminho a arma do crime. Seguiu em paz.

Por Sofia Mathias

Os sons do cafezal

Os sons do cafezal

Lua caminhava pelo cafezal com os pés descalços sobre a terra úmida. Deu dois passos, olhou para trás e viu Raimundo, o capataz da fazenda recolhendo os grãos espalhados pelo chão.

Ao se aproximar, o homem disse: – Bom dia menina Lua. Não devia estar em casa, preparando o almoço? Perdi a noção das horas, respondeu. O cheiro das folhas me faz sonhar. 

 Lua continuou subindo pelas ruas da plantação, ouvindo ao fundo a voz do capataz, que dizia estar cansado de rastelar a terra molhada, onde os grãos se misturavam à areia, formando um caldo azedo, sentido à distância.

 Nada disso mudou o rumo de Lua. A voz do capataz ao longe, e Lua tentando apagar os sons, que resistiam. Restava o eco de Lua, Lua, repetidas vezes, ditas por Raimundo. E a menina apertava os passos para fugir do som, agora, quase imperceptível.

Era hora de voltar. Olhou para o céu. Por que sempre preciso voltar? Para onde, repetiu Lua. Tenho o almoço para cuidar. 

O som foi se aproximando. Raimundo conversava com os pés de café. Lua passou por ele e quando chegou à sede, o som ainda entrava em seus ouvidos. Lua, Lua, hora de almoçar. A voz do capataz a acompanhou. O bate-bate das panelas a distraiu. O capataz entrou na cozinha. Lua tapou os ouvidos, e o mesmo som se espalhava. Lua, Lua, chamava ele, como se não houvesse ninguém para responder.

Por Sofia Mathias

A lata

A lata - Anna Maria Mello

Uma lata poderia ser muitas coisas. Nas primeiras semanas que cheguei a Porto Alegre, os dias eram iluminados. O sol parecia entrar pela cabeça, descendo pelo corpo, passando por todos os órgãos até chegar em cada célula. A bola alaranjada que sumia no Guaíba nos finais de tarde me aquecia. Era tudo novidade e isso me bastava. Faltava um lugar para me instalar. Na busca pela internet, encontrei um apartamento de frente para o rio. Depois de arrastar a mala pelos degraus de uma estreita escada, me jogar na cama com o corpo grudento, roupas molhadas de suor, abri a geladeira e constatei que precisava ir ao supermercado. Dentre as ofertas da prateleira abarrotada de mercadorias, decidi por um bom vinho, uma caixa de massa e duas latas de molho de tomate. Comi, lambendo os dedos. O que sobrou, guardei para o dia seguinte.

Durante a madrugada, acordei com ruídos vindos de uma avenida próxima. Breques de ônibus que precisavam de pastilhas novas, pessoas que gritavam saindo de uma balada, pelotão de exército comandado por toques de apito. Sem conseguir pregar o olho nas noites seguintes, bastaram alguns dias para que me mudasse. De lá, levei as roupas e uma lata de molho de tomate.

Na nova moradia, longe do Guaíba, o sol descia em meio aos prédios. Nas manhãs, ouvia o cantar de pássaros. O apartamento tinha móveis mais confortáveis, escolhidos a dedo pela proprietária. Mas nada tinha minha cara.

As noites eram mais difíceis. Pensava nas coisas que havia deixado para trás, em São Paulo. As filhas, os cachorros, os amigos. Deitada de barriga para cima, demorava a pegar no sono.  

Em algumas madrugadas, acordava molhada, com os olhos fixos na parede bege. Não reconhecia nenhum objeto. Por alguns minutos, não sabia onde estava.

Os dias da semana eram preenchidos por estudos e trabalho, livros que me levavam a lugares longínquos e, por vezes, inóspitos.

Em uma sexta-feira de maio, quando recebi a visita de minha filha, o sol já não brilhava tão forte, e as nuvens se agitavam formando tempestades. Júlia chegou animada para desbravar os pampas. Assim que entrou, foi logo dizendo:

– Nem parece sua casa, aqui combina mais comigo.

Ela tinha razão, mas não havia me dado conta. Estava na hora do almoço e resolvi fazer a macarronada, aquela tradicional da “mama”. Sabia que, assim, ela se sentiria em casa. De barriga cheia, nos atiramos na cama e juntas, tiramos um cochilo. Ao acordar, do quarto, entre as frestas de madeira que dividiam o único ambiente, pude ver a sombra de Julia na cozinha. Estava com algo nas mãos. 

– Mãe, vem cá. Que tal pintarmos essa lata?

Era uma boa ideia, faríamos algo juntas. Nessa hora, a panela já estava com água fervente. Mergulhei a lata. Encostei de relance a mão na tampa da panela. Senti arder. Olhei o mindinho; estava vermelho, mas não disse nada a Julia. 

Saímos para comprar tinta e outros apetrechos. No caminho, Julia contou de seu novo emprego na empresa de cosméticos, na área de Marketing. Estava animada, e eu feliz por vê-la tão bem.

De volta ao apartamento, começamos a pintar a lata. Meus dedos melecados de verde cobriam a bolha do mindinho. O cheiro de tinta tomou conta da sala. Abrimos as janelas e resolvemos sair para comer. No caminho, passamos por uma loja de artesanato. Julia olhou para um guardanapo estampado com cactos.

– Vai combinar com a lata.

– Sim, vai cobrir as imperfeiçoes da tinta. Vamos levá-lo.

Pegamos o pacote de guardanapos, um verniz, e voltamos  para casa. Dessa vez, foi Júlia que quis aplicá-lo. Observei como deslizava os dedos sobre as nervuras, seus dedos preenchendo os espaços vazios. Deixou em cima da pia para secar. Voltou depois de um tempo para reaplicar outra camada, enquanto eu ajudava com as malas. Era hora de sua partida. 

Durante a noite, o cheiro não incomodou. Mesmo assim, abri a janela para circular o ar. No celular, mensagem de Julia, dizendo ter chegado bem. Encostei no travesseiro e dormi.

No dia seguinte, a lata já estava seca. Posicionei-a na escrivaninha ao lado de uma pilha de livros. Peguei o lápis com o qual estava escrevendo e coloquei dentro. Admirei-a por alguns segundos. Como havia sido bom o final de semana.

O semestre passou rápido. Ganhei outros lápis, borrachas e canetas. 

Resolvi fazer uma macarronada. Dessa vez, seria para os amigos. Arrumei a casa. Em cima da escrivaninha, bem do lado das pilhas de livros, ajeitei a lata.

Texto produzido na Oficina de Escrita de Não-Ficção do Prof. Dr. Fred Linardi

Por Anna Maria Mello

A onda

A onda - Anna Maria Mello

Com os olhos fixos no mar, estava sentada de pernas esparramadas e pés enterrados na areia. Entre as mãos, um pequeno balde plástico furta-cor. No pescoço, um reluzente crucifixo, presente de sua mãe na primeira eucaristia. Havia completado 11 anos e sabia falar na internet sem gaguejar. Tinha ideias de adulto. 

Se levantou. Chacoalhou os pés, jogou o pequeno balde no chão e foi em direção à mãe.

– Natalia, quero fazer uma tattoo
– Quer o quê?
– Fazer uma tattoo – repetiu revirando os olhos.
– Isso é coisa do demônio.

 Estava de boca aberta. Resolveu ganhar tempo.

– O que você quer tatuar? 
– Uma onda.
– Se você fizer, vai doer.

Carol estava decidida. Bateu o pé no chão e com o dedo apontou o local.

– As crianças de hoje querem cada coisa – disse a mãe em voz alta. Não sabia nem o que era tatuagem. Pegava jacaré nas ondas com uma prancha de isopor.
– Você sabia que tatuagem dói?
– Dói nada.

Natália desistiu, pegou seu livro na cadeira ao lado. Mergulhou nas páginas afastou-se da filha.

Carol deu as costas para mãe e foi em direção ao mar. Colocou os pés na água que batia em seu tornozelo. Andou alguns metros. A água respingou em sua barriga e peito. Veio uma onda que a tragou.

Quando Carol acordou, estava na areia, nos braços de Pedro, o vizinho da casa da frente. A seu lado, uma prancha escrita “New Wave”.

A mãe respirava ofegante. 

 – Que susto. Falei que não era para ir no fundo.

Carol tinha os olhos em Pedro. Não havia percebido o quanto ele era musculoso.  Ele perguntou se ela estava melhor, se podia levá-la para casa. Ela balançou a cabeça de modo afirmativo.

À noite, já na cama com sua mãe, voltou a pensar na tatuagem. Agora faria duas. Olhou para seu braço esquerdo, imaginando como ficaria o nome de Pedro tatuado ali. 

Texto produzido na Oficina de Escrita Criativa do Prof. Dr. Antônio de Assis Brasil

Por Anna Maria Mello