Em meio a uma nuvem de poeira que vinha do Sul, a silhueta fina da moça cuidava para não se misturar à ventania que carregava as folhas espalhadas pelo chão da praça. Os bancos de mármore, cenário de casais apaixonados, mães observando seus filhos a brincar nos canteiros, agora sem flor. O lago, inspiração de pintores, poetas e sonhadores, hoje é um lamaçal coberto de mato resistente a pisadas de ratos noturnos povoando o vazio. 

O ir e vir de pedestres apressados cruzando caminhos, atrasados para o trabalho, indo para a escola, buscando a sombra das árvores frutíferas que serviam de pano de fundo eram lembranças. 

 Agora, apenas uma mulher, braços entrelaçados, cabeça baixa, coberta pelo pó. Imóvel, como que assistindo ao que foi, um dia. A estátua, objeto de fotos amadoras, embora, em parte, destruída, encarava a moça estática como ela. A destruição de ambas era visível. A estátua em cacos, apenas um olho no rosto e uma mulher ensaiando dar alguns passos em direção ao banco de mármore se entreolhavam. 

A moça de cabelos soltos arriscou pôr um pé adiante do outro. Movimento que fez rolar uma gota do olho da estátua. O vento cedeu lugar a uma garoa fina que impulsionou os passos da mulher de olhos opacos, desviando o encontro do olhar com uma estátua em pedaços, que resistia ao tempo. 

Os passos da moça descalça foram se tornando mais ousados. O caminho até a obra de arte da praça, hoje ferro velho, arrancou dela um sorriso. O passado trouxe consigo lembranças de um tempo de cheiros de frutas, flores de espécies raras, beijos roubados, discursos indecifráveis, mãos que se agarravam ao som de um trio de cordas. A chuva apertou. A moça, na praça, quase alcançava a estátua. Estava muito próxima. Agora eram as duas que sorriam. O ferro esverdeado do corpo da estátua jazia no chão de barro da praça.

A moça, cada vez mais próxima, começou a catar os cacos pelo chão, os seus e os da estátua. Mais uma vez, os olhares se cruzaram. A moça sentou no banco. Com as mãos apoiadas no mármore, guardou os cacos no lenço que trazia no pescoço. Sensação de frio nos pés e na alma. Era hora do acerto de contas. A estátua sabia demais. Mesmo destruída, restava um olho, o mesmo que havia assistido aos seus segredos. Tantos e todos, em 40 dias e noites de confissões em silêncio. A moça se apressou. Precisava acabar com o sofrimento, o seu e o da estátua. Olhou em volta. A poeira agora se juntava à lama do chão. Os pés cobertos de terra buscavam apoio para escalar a estátua. Era o momento certo de prestar contas a si mesma. Não importava o que a estátua pudesse pensar. Ela sabia demais. A moça, com um pedaço de ferro encontrado no chão da praça, alcançou o rosto da estátua, o que restou dele. Num ímpeto, lançou o ferro em direção ao olho da estátua. O barulho de um ferro tocando no outro foi o único som ouvido. Os pedaços de ferro foram se espalhando a seus pés. Não havia mais olho, nem testemunha de um passado que devia ser esquecido. A morte da estátua, aos olhos da moça, que deu as costas, acelerou seus passos, deixando no caminho a arma do crime. Seguiu em paz.

Por Sofia Mathias

Sofia Mathias

Autora Sofia Mathias

Poeta de alma, Sofia Mathias descobriu-se escritora em um momento de dor e reclusão. As palavras trouxeram respostas para suas indagações. Autora de três livros de poemas, De Corpos e Almas e De Choros e Luas, além de coautora do livro Da Janela. Fez parte de uma Antologia de poemas pela editora Chiado e teve seu primeiro livro prefaciado pelo escritor Jorge Amado, pelo qual recebeu o prêmio da APCA de Revelação em Literatura. Formada em Letras pela Universidade de São Paulo e em Comunicação pela FAAP, colaborou em projetos da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Hoje, ministra cursos de Escrita Criativa na FUNCADI, juntamente com Ana Maria Mello, dá aulas de redação para vestibular e é orientadora e redatora de TCCs de diferentes faculdades.

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