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junho 2025

Memória e autoficção | Entrevista para o site Caixa Preta, por Paulo Henrique Passos

O professor de criação literária Stephen Koch escreveu, no seu livro Oficina de escritores: Um manual para a arte da ficção, que “o vínculo íntimo entre ficção e não-ficção é quase tão antigo quanto a literatura”

Pode-se dizer que a nossa convidada de hoje também reconhece esse fato. Mais do que isso, ela se alimenta desse fato para escrever. Por falar em fato, na nossa conversa, falamos sobre as relações entre fato e ficção.

Anna Maria Mello (@anna.escritora) é autora do romance Montanhas de Diana (Quelônio, 2024 @editoraquelonio) que mostra as memórias e desafios de uma mulher que precisa enfrentar um câncer de mama.

Na conversa que tive com ela, falamos sobre o so da memória como recurso literário, diferença entre realidade e ficção na escrita, formação acadêmica e oficinas literárias e sobre muito mais.

Vale ler até o final.

O recurso da memória é muito presente no seu romance Montanhas de Diana.
Qual a importância da memória para a sua escrita literária?

Romance Montanhas de Diana,
de Anna Maria Mello

O processo de criação de cada livro é um livro. Esse foi pensado nesse formato, trazendo essa memória da personagem da infância e da adolescência, da criação do corpo feminino, dos seios dela que vão crescendo, das coisas que ela sofreu também, violências contra o corpo feminino — tudo isso para desencadear o momento presente, que é o câncer.

Associei a momentos de memória mais light, para amenizar um pouco a escrita. Esses flashbacks vêm como uma técnica para tirar o leitor do tempo presente, que é um tempo de tensão, onde ela está doente e internada. Então, vêm como um recurso literário essas memórias.

Como você enxerga a relação entre memória e ficção?

A memória também é uma ficção, porque é o ponto de vista. Pode beirar o real, mas é o ponto de vista do autor que transforma em ficção. Para mim, a memória é um recurso que a gente utiliza para escrever a ficção, mas ela não tem nada a ver com a realidade, porque já é transformada.

Montanhas de Diana é uma autoficção? Fale um pouco sobre isso.

Sim, é uma autoficção. Eu tive câncer, tenho duas filhas, tive amigas que me ajudaram, e muitas passagens são reais da minha história. Mas também há partes ficcionais.

Quarta capa do romance Montanhas de Diana,
de Anna Maria Mello

Foi baseado em fatos reais, mas também tive muito contato com pessoas que tiveram câncer. Sou ativista na causa. Coleti dados para formar o livro. Não é só a minha história, é a história de muitas Dianas. As amigas são personagens ficcionais. Os nomes também. Minhas filhas não são como descrevi. Tem partes baseadas na minha história e outras que são ficcionais ou baseadas em outras histórias.

Diana, na mitologia romana, é a deusa da lua, da caça, da natureza selvagem e dos animais. Ela também é associada ao parto, à fertilidade e à proteção das mulheres. Como foi o processo de dar o nome ao seu romance Montanhas de Diana?

O nome da personagem foi a última coisa que coloquei, porque queria algo muito bem pensado. Diana é parte do meu nome. Isso mistura ficção e realidade. Sou historiadora, fiz um curso na USP sobre mitologia, sou muito ligada à mitologia grega. Gosto muito particularmente, e acho um nome forte, que carrega força. A personagem precisava de um nome assim.

Diana, a personagem central, sendo mãe de duas meninas, se vê entre dois desafios: se cuidar para se recuperar do câncer de mama e cuidar das filhas. Qual você acha que é o maior desafio de uma mãe hoje?

É muito difícil se cuidar e ter filhas nesse momento, ainda mais sem um pai presente. Muitas Dianas por aí não têm suporte familiar. Às vezes o marido larga, ou não há pai. Precisa de uma rede de apoio.

Cabelos vão, cabelos vem, de Anna Maria Mello

A personagem vai para a casa do pai biológico. Minha filha, na época, tinha 15 anos e foi morar com o pai porque eu não estava conseguindo lidar com tudo. Escrevi um livro infantil chamado Cabelos vão, cabelos vêm: o que é que a mamãe tem?, para contar aos filhos que a mãe está doente. Esse livro foi um best-seller e até hoje dou para muitas mães.

A literatura pode ajudar a se identificar com a personagem. Muitas mães cuidam dos filhos e esquecem de si. A personagem trabalhava muito e acabou adoecendo. Às vezes a mulher não faz exame, não faz mamografia após os 40 anos, ou ultrassom a partir dos 35 se houver histórico familiar. Se pegar no início, é mais fácil. No estágio intermediário, como foi o caso da Diana, o tratamento é mais pesado. Por mais que se seja mãe, é preciso se cuidar, independente de tudo.

Você é ativista pela causa do câncer de mama. Como a experiência como ativista influenciou na escrita do seu livro?

Sim, sou ativista. Vi muitas realidades. Me envolvi com pessoas de todos os níveis sociais. É uma doença que nivela as pessoas.

Vi uma menina com 25 anos, de família riquíssima, com câncer agressivo. Mesmo com recursos, sofreu muito, ficou estéreo, perdeu o cabelo, o namorado a deixou. Também frequentei o SUS, participei de grupos com pessoas com câncer. Às vezes falta até sabonete para o pós-operatório. Eu mesma perdi dentes com o tratamento. O corpo muda: é o dente, a mama, os cabelos, a sobrancelha. A mulher deixa de se reconhecer.

Por isso, essa questão do corpo está presente no livro. Ser ativista me influenciou muito. Fiz pesquisa com mulheres. Essa não é só a minha história — é a história de todas essas mulheres e de suas famílias.

Eu queria que fosse um livro de muitas Dianas, guerreiras, pessoas que lutam contra essa doença. Que esse livro sirva para que outras mulheres se identifiquem com a personagem e tenham força para lutar.

Você fez a Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz e a Oficina de Criação Literária com o professor e escritor Assis Brasil. Qual foi o seu maior aprendizado no estudo da escrita literária?

Mikhail Bakhtin, filósofo da linguagem, historiador e teórico da literatura e da cultura russo

Além da Formação de Escritores e da Oficina, fiz mestrado em crítica literária na PUC e estou finalizando o doutorado. Toda essa formação influencia na escrita com técnicas de fluidez e intertextualidade.

Leio muito, praticamente todos os dias. Sempre fui uma excelente leitora desde a infância, e isso me deu facilidade com a escrita.

Esse livro teve um processo de criação diferente. Havia um personagem masculino que retirei na última hora porque achei que tirava a força da protagonista. A última versão foi muito trabalhada.

Tenho um processo de criação e técnica de escrita para cada livro. Hoje penso muito bem nos personagens e nas suas reações. Estudo personagem filosoficamente, trago Bakhtin, intertextualidade, e outros recursos que vêm das minhas formações. Já estou com novos projetos em andamento, com outros processos de criação, que não têm relação com autoficção.

Entrevista realizada por Paulo Henrique Passos do site Caixa Preta Entrevista, em 13/06/2025

Caixa-preta é um site de entrevista com escritores e escritoras. 
E sendo caixa-preta “qualquer sistema, organismo, função, etc., cujo funcionamento ou modo de operação não é claro ou está envolto em mistério”, representa uma ideia que se aproxima da literatura.

Links: @paulohenrique.passos e caixapretaentrevista.com

Os Lobos, Revista Sarau

Quando Tereza se deparou com Adriana sentada na escadaria do prédio, entendeu na hora. A menina vestia a calça vermelha com listra azul marinho, uniforme do Cristóvão, e apertava a mochila contra o peito, a sombra do corrimão ocultando os olhos. Tereza perguntou ei, tudo bem? Adriana levantouse e como um foguete, correu rumo ao terceiro andar, onde morava.

Tereza mudara-se há pouco mais de três meses para Caxias do Sul, fugida de Pelotas, sabendo que a família ainda não possuía uma linha telefônica e que o contato com eles daquela distância seria quase inviável. Buscava recomeçar a vida em uma cidade um pouco maior, onde já arrumara emprego como secretária na Guerra, empresa que produzia implementos rodoviários nos anos 1970.

Vinha percebendo Adriana pelas ruas e pelo prédio, onde por vezes ouvia a mãe chamando a menina pela janela do terceiro andar, logo abaixo do apartamento 403, que alugava. Se preocupava com a menina que mesmo no meio da primavera usava mangas compridas e, cabisbaixa, nunca respondia aos cumprimentos de ninguém.

Mesmo na penumbra da escadaria, Tereza reparou em um hematoma roxo escuro se sobressaindo por entre os cabelos claros da menina, logo acima da gola e abaixo da orelha. O tipo de marca difícil de esconder e isso Tereza sabia por experiência própria. No espaço vazio deixado pela menina antes sentada nos degraus, ela encontrou um caderno encapado com capricho. Ao abrir, folhas sem pauta recheadas com desenhos bonitos, ainda que sem cor, feitos com lápis grafite 2B. Se surpreendeu com a habilidade da menina que não devia ter mais de dez anos e decidiu que aquele caderno seria a ponte para alcançá-la.

Dias depois, tocou o ombro da menina que, pelas grades do prédio, observava as outras crianças do bairro envolvidas em uma partida de taco.

— Encontrei teu caderno na escada esses dias. — Disse Tereza. — Tu és muito talentosa.

Adriana respondeu com um olhar assustado e Tereza reparou na mancha então amarelada ainda presente em sua clavícula, despontando discreta e brutal pela gola do uniforme. Tereza se apresentou como a vizinha do andar de cima e convidou a menina para buscar o caderno quando quisesse. É só bater no 403, tô sempre em casa esse horário. Viu Adriana fazer que sim com a cabeça, voltando a atenção para a partida de taco da gurizada.

Tereza não achou que a menina apareceria a sua porta tão cedo, porém se surpreendeu com a visita já no dia seguinte. Abriu a porta para que Adriana entrasse em seu espaço seguro, o semblante assustado se suavizando conforme familiarizava-se com o entorno. A mulher ofereceu grostoli a menina, recém frito na padaria da esquina e que Tereza comprou por acaso, motivada por uma ansiedade hormonal que a fazia desejar doces e frituras. Tirou da gaveta da cozinha um pacote de Kisuco de uva e misturou com água direto da torneira, servindo um copo para si, e outro para Adriana, que sentara-se a mesa forrada com plástico poá.

O caderno foi resgatado sem que a artista dissesse palavra, nem mesmo agradeceu pelo doce e pelo suco, porém sorriu ao sair, quando Tereza reforçou que voltasse sempre. A partir de então, uma amizade silenciosa se estabeleceu entre elas. Adriana batia a sua porta duas ou três vezes na semana, ao fim do dia, largava a mochila em um canto da sala e partilhava um lanche preparado por Tereza na cozinha. As palavras foram preenchendo o apartamento a conta gotas. Primeiro um obrigada, depois um boa tarde, então Tereza perguntou como foi a aula e Adriana contou sobre a dificuldade que tinha com matemática.

Entre sucos e bolos, Tereza se tornou tutora involuntária de uma menina que mal conhecia. Se esforçava para lembrar das lições do colégio, não assim tão distantes, estando ela na casa dos vinte e poucos anos. As visitas irregulares se tornaram diárias e Tereza se apressava na saída do trabalho para não perder a condução e deixar sua jovem amiga a espera. Nestes fins de tarde, mantinha-se atenta as evidências ocultas pelas roupas cada vez mais fechadas que Adriana usava, mesmo que a primavera já tivesse se tornado verão.

Em uma das visitas Adriana, que sempre ia embora antes do por do sol, se demorou. Minha mãe está viajando hoje. Disse com uma voz miúda e Tereza deixou que a menina ficasse. Quando deu oito horas e nem a mãe, nem o pai apareceram procurando pela criança que folheava A hora da estrela em seu sofá, Tereza decidiu preparar a janta.

Reparou, quando sentaram-se a mesa, que a respiração de Adriana subira do peito aos ombros. Acabou perguntando sobre a viagem da mãe, descobriu que a vizinha fora resolver questões de família no interior. E o teu pai?

— Ele não é meu pai. — Adriana olhou para o relógio acima da porta e rasgou um pedaço do pão com margarina e mel antes de levá-lo a boca, a doçura escorrendo por entre os dedos da criança.

Tereza não sabia, mas em casa, Adriana estaria encolhida dentro da despensa. Lá havia construído um local secreto, improvisado. Levou seu caderno de desenho com o lápis 2B, uma lanterna, o terço que ganhou da avó na primeira comunhão, meses antes de sua morte. Lá dentro não conseguia ficar em pé, prateleiras cheias de farpas pendiam sobre a cabeça da menina. Ainda assim, sentia-se segura no espaço estreito, a única porta da casa que viera com chave e permitia que Adriana se trancasse. Ela gostava do modo como as claridade atravessavam as frestas da porta, quando a luz da cozinha estava acesa, porém isso indicava perigo, o lobo estava próximo e com fome. Quando ele a pegava, doía demais.

Fazia semanas que Adriana não precisava se chavear na despensa, graças as horas passadas no apartamento 403. Naquela noite, estava com medo de voltar para casa e se ver sozinha com o lobo. Não sabia como falar sobre o assunto com Tereza, mas queria que ela entendesse. Aquele jantar era um pedido de socorro.

— Quando tua mãe volta, Adri?
A menina deu de ombros, não sabia. Tudo o que a mãe disse ao sair naquela manhã foi que passaria uns dias fora, pediu que ela se comportasse e foi embora com o marido, que a deixaria na rodoviária no caminho para o trabalho.

Tereza não disse mais nada, tirou a mesa e ligou a televisão na sala, era hora da novela das oito, ou seja, hora de criança estar indo pra cama. Ainda assim, assistiram um capítulo de Pai Heroi, novela da Globo. A imagem de Tony Ramos entrava e saia de esquadro em função do mau contato que fez Tereza se levantar e dar batidinhas na lateral da caixa antes de mexer na antena. O ator desapareceu por completo, sendo substituído por uma imagem de ruido cinza, ainda que sua voz soasse clara pela casa. Quando conseguiu retomar o sinal, a cena já havia passado e a TV exibia um close do rosto de Glória Menezes. Uma batida firme na porta a fez soltar a antena e perder o sinal mais uma vez, dividindo o rosto da atriz em duas partes, uma cromática e outra esverdeada.

— O de casa? — Uma voz masculina atravessou a porta, seguida por outra batida.

Adriana se encolheu no sofá, usando uma almofada bordada como escudo. Tereza desligou a televisão.

— Adriana! — Uma única pancada forte na porta. — Tá na hora de ir pra cama e deixar a vizinha em paz. Tua mãe já ligou duas vezes.

A menina não se mexeu, seu olhar encontrou o de Tereza, também estática, em pé no meio da sala. O desespero que encontrou ali fez com que a mulher se movesse sorrateira até a porta. Uma batida mais forte lhe causou um sobressalto, viu a maçaneta se mover na tentativa do lobo de entrar na casa.

Tereza fez sinal para que Adriana puxasse a cordinha do abajur. No escuro completo, passou o trinco, deixando que o homem batesse até desistir. Tereza reconheceu nele o lobo da própria infância

Por Anna Maria Mello

Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente. Paulistana, desde 2015 se dedica à literatura. Pós-graduada em Escrita Literária pelo Instituto Vera Cruz. É autora de três livros. Formada em História pela USP, Atualmente, mestranda da PUCSP em Crítica Literária. As letras transformaram sua vida e abriram novos caminhos.

Montanhas de Diana

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