Márcio, aos cinco anos, já fazia contas de subtração. Certo dia, foi a uma venda, próxima de sua casa. Fez a conta de cabeça. O comerciante percebeu que ele estava correto, por isso ganhou um pacote de balas de presente. Nunca esqueceu esse dia. Anos depois, ao prestar vestibular, escolheu Administração Pública na GV, se destacando como excelente aluno, o que logo ao se formar lhe rendeu um cargo de funcionário público no banco do Brasil. Local onde conheceu sua primeira namorada. Casou-se no mesmo ano que ganhou a promoção para gerente. Com ela, teve três filhos: Laura, Lara e Lucas. No dia em que Lara completou 13 anos, no carro, voltando da festa do boliche, sua esposa sentiu-se mal. O braço esquerdo enrijeceu e a boca entortou para o mesmo lado. Márcio correu para o hospital, mas o infarto foi fulminante. Aos 45 anos, Márcio se viu só no mundo com os seus três filhos. Resolveu que deveria ter um hobby. Passando a pé pela rua do trabalho, viu uma placa de escola de dança. Nela estava escrito: venha fazer uma aula gratuita de salsa. Márcio resolveu testar. Adorava coisas free. Contou os passos. Descobriu que levava jeito para a coisa. Em um dos giros, olho no olho, se apaixonou por Lúcia, a professora de salsa. Depois de alguns dias, passaram a frequentar um bar, após as aulas. Passado um mês, estavam namorando. Em casa, tudo continuava igual. Márcio acumulava o papel de “Pãe”, palavra que se aplica para quem exerce as funções de pai e mãe. Ele continuou levantando duas horas mais cedo para preparar o dejejum: café, leite, pão, ovos mexidos e bacon, que eram sua especialidade. Ao redor da mesa conversava sobre assuntos do dia anterior. Márcio nunca mencionou Lúcia para os filhos em respeito à morte recente de sua esposa. Gostava de ver, que em meio a risadas, lambiam os dedos encharcados de gordura e limpavam na toalha que Márcio fingia não ver para não estragar aquele momento.

Até que em uma manhã, o dia começou diferente. Lara não tocou nos ovos, porque estava ansiosa para sua apresentação na peça de teatro do colégio. Lucas acordou atrasado e só conseguiu tomar o leite. Márcio não viu Laura, lembrou que ela tinha dormido na casa de uma amiga e que lera o bilhete no aparador, que dizia: Vou direto da faculdade para o teatro, encontro vocês lá, guarda lugar bem na frente pra mim. Love u. No caminho para a escola, Lara só falava da peça. Seu papel como atriz principal e como ela desejava que sua mãe estivesse presente naquele momento.

Lucas interrompeu Lara dizendo:

-Eu não quero ir. Vou ficar na casa do Filipe, depois da aula.

– Tá, não enche Lucas. Não quero você zoando na minha peça.

Antes de bater a porta do carro, Lara disse:

-Pai, eu vou direto com a turma do teatro. Não se atrase, please.

Márcio fez com a mão o sinal de positivo e seguiu para o banco, como era de rotina.

Ao chegar, tomou mais um café e seguiu em direção à sua sala. Em frente à mesa já havia uma senhora sentada aguardando.

– Bom dia Sr. Márcio, vim pedir um empréstimo. Você não vai negar, né?

Márcio abriu o computador e percebeu que estava sem sistema. Pediu que ela voltasse mais tarde, mas ela insistiu em aguardar. O dia estava prometendo.

A senhora desatou a contar sobre sua história, que havia separado e o marido não pagava a pensão da filha, e que ela havia assumido todas as despesas da casa. Márcio ouviu a história. Sabia que não poderia se envolver, era parte de sua profissão. Mas a senhora não parava de falar. Márcio pegou o celular. Viu uma mensagem de Lúcia. Abriu debaixo da mesa. Leu. Nela estava escrito: Não esqueça do happy hour, às 19h, hoje, em casa. Não se atrase, tenho uma coisa importante para te contar. Márcio achou melhor não responder, empurrando o celular debaixo de uma pilha de contratos. Pensou na apresentação da filha, às 19h. A senhora à sua frente, parecia determinada a esperar. O telefone interno tocou. A voz do rapaz da recepção dizia ter mais três pessoas aguardando. Ela, irredutível. Márcio digitou a senha no computador. Nada. Pegou o celular. Outra mensagem de Lúcia, dizendo: Vou colocar a música de salsa que gosta para dançarmos juntos. Os amigos vão ver como você está se saindo bem. Sou boa professora né? Inclusive de outras cositas. kkk.

Márcio corou, lembrou das brincadeiras que fazia na cama com Lúcia, de seu corpo de curvas fartas, bunda enrijecida, e de como ela fazia sexo oral bem. Nunca tinha sentido uma boca tão gostosa antes. Precisava responder algo. Achou por bem mandar um Mimes de positivo.

Depois de uma eternidade, a senhora desistiu. Voltaria mais tarde. Márcio respirou. O celular acusava nova mensagem. Dessa vez, de Laura. Perguntava se tinha visto o bilhete e que ele não esquecesse de pegar lugar na frente. Tinha prova na faculdade e chegaria encima do horário. Ele respondeu, enviando um meme de positivo e um coração. O rapaz da recepção avisou que o sistema havia voltado. Chamou o próximo cliente que tinha dúvidas sobre seus investimentos. Fez novas projeções de mercado e mostrou a cesta de opções. O cliente demorou a entender e não saiu satisfeito. Márcio pegou o celular, pensou em convidar Lúcia para o almoço. Mas a fila de atendimento estava grande e o horário restrito. Digitou uma mensagem para Lúcia sobre a peça de teatro de Lara e sua importância. Antes de ele enviar, outra mensagem de Lúcia apitou. Lúcia enviou a foto de uma langerie preta e um dizer: Olha o que te aguarda. Márcio pagou a mensagem. Mandou um meme de carinha com coração. Mal engoliu um sanduiche, entrou mais um cliente. Dessa vez, uma jovem para abrir sua primeira conta. Queria saber as diferenças entre aquele banco e um digital que seu namorado tinha recomendado. Ele olhou suas feições e lembrou-se de Lara. Tinha os cabelos castanhos lisos na altura dos ombros e um largo sorriso que fazia mostrar os últimos dentes. Usaria esse sorriso durante a peça?

Márcio explicou as diferenças como se ela fosse uma de suas filhas. Ofereceu café e água, mas a garota não aceitou. Foi embora na certeza de que iria abrir no digital. Márcio bufou. Uma pontada na cabeça lhe fez lembrar da peça de Lara. Não podia desaponta-la. Tomou um remédio para aliviar. Nova mensagem de Lúcia. Uma foto mostrava duas taças e um balde com espumante e três corações. Logo abaixo uma frase dizendo: só falta você!

Márcio respondeu com um coração.

Já eram quase quatro da tarde, quando a mesma senhora voltou. Queria o crédito de qualquer maneira. Ela abriu uma pasta, mostrou comprovantes, mas Márcio precisava checar o que demandava tempo. Quando convenceu a mulher de que não poderia lhe dar o crédito, já passava das cinco e trinta. Uma nova mensagem no celular, dessa vez, do professor de Lucas. A escola já estava fechando, e ele precisava se apressar. Havia esquecido que era dia de rodízio entre ele e a mãe de Filipe. Márcio ainda teria que levá-los antes do teatro à casa de Felipe, filho da melhor amiga de sua falecida esposa. Pegou o carro e foi em direção a escola sem pensar em Lúcia. Lara mandou foto vestida com o figurino. Mandou beijos. Uma fisgada na perna esquerda lhe fez lembrar da morte de sua mulher. Ela saberia como resolver? Se ela estivesse viva não teria conhecido Lúcia?  Ou teria? Melhor não pensar e acelerar. Buscou os meninos com os portões da escola fechados. A mãe de Filipe ligou, perguntando: Onde vocês estão?

Márcio pediu desculpas pelo atraso e disse que deixaria os meninos na portaria. Sozinho no carro, Márcio recebeu novas mensagens, mas não teve coragem de abri-las. Desligou o celular. Foi em direção à marginal. Pegou uma bala do pacote que estava no porta-luvas. Ligou o rádio em sua estação preferida, abriu a janela para sentir o vento bater em seu rosto. Acelerou. Na rodovia, em direção à praia, atirou o celular pela janela.

Por Anna Maria Mello

Anna Maria Mello

Autora Anna Maria Mello

Amante da escrita desde que se entende por gente, paulistana, enveredou-se pelos caminhos da história, na Universidade de São Paulo, no início dos anos 90. Desde 2015, se dedica à literatura. Pós-graduada em Escrita Literária, formação de Escritores pelo Instituto Vera Cruz e na PUC-RS foi Aluna da Oficina de Escrita Assis Brasil. É autora de Cabelos vão Cabelos vêm o que é que a Mamãe tem, coautora do livro Da Janela. Participou de diversas antologias. Hoje, com Sofia Mathias ministra curso de Escrita Criativa em São Paulo e é mestranda da PUCSP em Crítica Literária. As letras transformaram sua vida e abriram novos caminhos.

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