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julho 2025

Os Lobos, Revista Sarau

Quando Tereza se deparou com Adriana sentada na escadaria do prédio, entendeu na hora. A menina vestia a calça vermelha com listra azul marinho, uniforme do Cristóvão, e apertava a mochila contra o peito, a sombra do corrimão ocultando os olhos. Tereza perguntou ei, tudo bem? Adriana levantouse e como um foguete, correu rumo ao terceiro andar, onde morava.

Tereza mudara-se há pouco mais de três meses para Caxias do Sul, fugida de Pelotas, sabendo que a família ainda não possuía uma linha telefônica e que o contato com eles daquela distância seria quase inviável. Buscava recomeçar a vida em uma cidade um pouco maior, onde já arrumara emprego como secretária na Guerra, empresa que produzia implementos rodoviários nos anos 1970.

Vinha percebendo Adriana pelas ruas e pelo prédio, onde por vezes ouvia a mãe chamando a menina pela janela do terceiro andar, logo abaixo do apartamento 403, que alugava. Se preocupava com a menina que mesmo no meio da primavera usava mangas compridas e, cabisbaixa, nunca respondia aos cumprimentos de ninguém.

Mesmo na penumbra da escadaria, Tereza reparou em um hematoma roxo escuro se sobressaindo por entre os cabelos claros da menina, logo acima da gola e abaixo da orelha. O tipo de marca difícil de esconder e isso Tereza sabia por experiência própria. No espaço vazio deixado pela menina antes sentada nos degraus, ela encontrou um caderno encapado com capricho. Ao abrir, folhas sem pauta recheadas com desenhos bonitos, ainda que sem cor, feitos com lápis grafite 2B. Se surpreendeu com a habilidade da menina que não devia ter mais de dez anos e decidiu que aquele caderno seria a ponte para alcançá-la.

Dias depois, tocou o ombro da menina que, pelas grades do prédio, observava as outras crianças do bairro envolvidas em uma partida de taco.

— Encontrei teu caderno na escada esses dias. — Disse Tereza. — Tu és muito talentosa.

Adriana respondeu com um olhar assustado e Tereza reparou na mancha então amarelada ainda presente em sua clavícula, despontando discreta e brutal pela gola do uniforme. Tereza se apresentou como a vizinha do andar de cima e convidou a menina para buscar o caderno quando quisesse. É só bater no 403, tô sempre em casa esse horário. Viu Adriana fazer que sim com a cabeça, voltando a atenção para a partida de taco da gurizada.

Tereza não achou que a menina apareceria a sua porta tão cedo, porém se surpreendeu com a visita já no dia seguinte. Abriu a porta para que Adriana entrasse em seu espaço seguro, o semblante assustado se suavizando conforme familiarizava-se com o entorno. A mulher ofereceu grostoli a menina, recém frito na padaria da esquina e que Tereza comprou por acaso, motivada por uma ansiedade hormonal que a fazia desejar doces e frituras. Tirou da gaveta da cozinha um pacote de Kisuco de uva e misturou com água direto da torneira, servindo um copo para si, e outro para Adriana, que sentara-se a mesa forrada com plástico poá.

O caderno foi resgatado sem que a artista dissesse palavra, nem mesmo agradeceu pelo doce e pelo suco, porém sorriu ao sair, quando Tereza reforçou que voltasse sempre. A partir de então, uma amizade silenciosa se estabeleceu entre elas. Adriana batia a sua porta duas ou três vezes na semana, ao fim do dia, largava a mochila em um canto da sala e partilhava um lanche preparado por Tereza na cozinha. As palavras foram preenchendo o apartamento a conta gotas. Primeiro um obrigada, depois um boa tarde, então Tereza perguntou como foi a aula e Adriana contou sobre a dificuldade que tinha com matemática.

Entre sucos e bolos, Tereza se tornou tutora involuntária de uma menina que mal conhecia. Se esforçava para lembrar das lições do colégio, não assim tão distantes, estando ela na casa dos vinte e poucos anos. As visitas irregulares se tornaram diárias e Tereza se apressava na saída do trabalho para não perder a condução e deixar sua jovem amiga a espera. Nestes fins de tarde, mantinha-se atenta as evidências ocultas pelas roupas cada vez mais fechadas que Adriana usava, mesmo que a primavera já tivesse se tornado verão.

Em uma das visitas Adriana, que sempre ia embora antes do por do sol, se demorou. Minha mãe está viajando hoje. Disse com uma voz miúda e Tereza deixou que a menina ficasse. Quando deu oito horas e nem a mãe, nem o pai apareceram procurando pela criança que folheava A hora da estrela em seu sofá, Tereza decidiu preparar a janta.

Reparou, quando sentaram-se a mesa, que a respiração de Adriana subira do peito aos ombros. Acabou perguntando sobre a viagem da mãe, descobriu que a vizinha fora resolver questões de família no interior. E o teu pai?

— Ele não é meu pai. — Adriana olhou para o relógio acima da porta e rasgou um pedaço do pão com margarina e mel antes de levá-lo a boca, a doçura escorrendo por entre os dedos da criança.

Tereza não sabia, mas em casa, Adriana estaria encolhida dentro da despensa. Lá havia construído um local secreto, improvisado. Levou seu caderno de desenho com o lápis 2B, uma lanterna, o terço que ganhou da avó na primeira comunhão, meses antes de sua morte. Lá dentro não conseguia ficar em pé, prateleiras cheias de farpas pendiam sobre a cabeça da menina. Ainda assim, sentia-se segura no espaço estreito, a única porta da casa que viera com chave e permitia que Adriana se trancasse. Ela gostava do modo como as claridade atravessavam as frestas da porta, quando a luz da cozinha estava acesa, porém isso indicava perigo, o lobo estava próximo e com fome. Quando ele a pegava, doía demais.

Fazia semanas que Adriana não precisava se chavear na despensa, graças as horas passadas no apartamento 403. Naquela noite, estava com medo de voltar para casa e se ver sozinha com o lobo. Não sabia como falar sobre o assunto com Tereza, mas queria que ela entendesse. Aquele jantar era um pedido de socorro.

— Quando tua mãe volta, Adri?
A menina deu de ombros, não sabia. Tudo o que a mãe disse ao sair naquela manhã foi que passaria uns dias fora, pediu que ela se comportasse e foi embora com o marido, que a deixaria na rodoviária no caminho para o trabalho.

Tereza não disse mais nada, tirou a mesa e ligou a televisão na sala, era hora da novela das oito, ou seja, hora de criança estar indo pra cama. Ainda assim, assistiram um capítulo de Pai Heroi, novela da Globo. A imagem de Tony Ramos entrava e saia de esquadro em função do mau contato que fez Tereza se levantar e dar batidinhas na lateral da caixa antes de mexer na antena. O ator desapareceu por completo, sendo substituído por uma imagem de ruido cinza, ainda que sua voz soasse clara pela casa. Quando conseguiu retomar o sinal, a cena já havia passado e a TV exibia um close do rosto de Glória Menezes. Uma batida firme na porta a fez soltar a antena e perder o sinal mais uma vez, dividindo o rosto da atriz em duas partes, uma cromática e outra esverdeada.

— O de casa? — Uma voz masculina atravessou a porta, seguida por outra batida.

Adriana se encolheu no sofá, usando uma almofada bordada como escudo. Tereza desligou a televisão.

— Adriana! — Uma única pancada forte na porta. — Tá na hora de ir pra cama e deixar a vizinha em paz. Tua mãe já ligou duas vezes.

A menina não se mexeu, seu olhar encontrou o de Tereza, também estática, em pé no meio da sala. O desespero que encontrou ali fez com que a mulher se movesse sorrateira até a porta. Uma batida mais forte lhe causou um sobressalto, viu a maçaneta se mover na tentativa do lobo de entrar na casa.

Tereza fez sinal para que Adriana puxasse a cordinha do abajur. No escuro completo, passou o trinco, deixando que o homem batesse até desistir. Tereza reconheceu nele o lobo da própria infância

Por Anna Maria Mello

Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente. Paulistana, desde 2015 se dedica à literatura. Pós-graduada em Escrita Literária pelo Instituto Vera Cruz. É autora de três livros. Formada em História pela USP, Atualmente, mestranda da PUCSP em Crítica Literária. As letras transformaram sua vida e abriram novos caminhos.

Entrevista para Coluna Cultura em Foco, Jornal Tribuna Liberal De Sumaré

Coluna Cultura em Foco – Por Wesley Silva
Entrevista com a autora Anna Maria Mello @anna.escritora

Redação: Evelyn Ruani – Coordenadora Técnica Educacional das Bibliotecas Escolares do SESI-SP, criadora de conteúdos literários e leitora compulsiva! Apaixonada por livros e palavras.

Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente, paulistana, enveredou-se pelos caminhos da história (USP). Pós-graduada em Escrita Literária, formação de Escritores pelo Instituto Vera Cruz e na PUC-RS, cursou a Oficina de Escrita do professor doutor Assis Brasil, com formação em conto.
Mestre em Crítica Literária pela PUC SP, especializada em Literatura Contemporânea Brasileira e doutoranda em Processo de Criação Literária pela PUC SP. Atualmente participa do Grupo de Pesquisa de Literatura para Jovens da PUC SP(CNPQ). É autora de Cabelos vão Cabelos vêm o que é que a Mamãe tem, coautora do livro Da Janela. Participou de diversas antologias publicadas em âmbito nacional.

Vem comigo conhecer um pouco mais sobre essa autora e sua obra:

Anna, “Montanhas de Diana” traz uma narrativa profundamente pessoal. Como foi o processo de transformar uma vivência tão íntima em ficção?

Para mim a escrita desta ficção foi mais difícil do que outros livros que escrevi. Partir de uma vivência pessoal requereu um maior afastamento, portanto mais versões, e mais tempo de escrita. Achar este limite entre a ficção e real, enfim, encontrar a voz de uma personagem que não sou eu exatamente mais que parte da minha experiência pessoal, demorou um certo tempo e amadurecimento dessa escrita.

A protagonista, Diana, é uma mulher forte e bem-sucedida, mas também esgotada pelas exigências do trabalho e da vida. Em que aspectos ela se aproxima de você e em quais vocês se distanciam?

Diana sou eu e inúmeras mulheres fortes, que criam seus filhos sozinhas e que independentemente de serem bem-sucedidas ou não, trabalham muito e se esquecem de cuidar delas. Me distancio de Diana porque sempre fui unida às minhas filhas, e elas a mim. Nesse livro quis mostrar que a doença não é só da personagem Diana, mas sim de todos os familiares que estão ao redor. Recebi vários e-mails perguntando sobre as atitudes de Mia e Beka, se elas eram minhas filhas e porque me tratavam assim. Mas esquecem que estão lendo uma ficção e os personagens são apenas personagens. Eu os criei para darem um efeito de sentido à leitura, e com eles algumas reflexões.

O câncer de mama é um tema delicado e ainda cercado de tabus. Qual foi o seu maior desafio ao abordar esse assunto de forma tão sincera e poética?

Ah esta foi uma boa pergunta. Antes de escrever qualquer assunto, leio vários livros do mesmo tema. Parto de pesquisas. Faz parte do meu processo de criação. Vai muito além da minha vivência pessoal. Eu queria trazer esse tema do câncer de Mama para a literatura, de uma forma que não fosse um livro difícil de ler, mas ao mesmo tempo queria uma escrita literária. Escrever de uma forma fluida e suave foi um grande desafio.

Além da jornada de tratamento, o livro também mergulha em memórias da infância e juventude. Como essas lembranças ajudam a construir a identidade da personagem e o enredo da obra?

Para encontrar uma forma de construir essa Diana do presente, mergulhei em suas memórias para que o leitor pudesse conhecer um pouco mais sobre ela. Como seu corpo se transformou. Cenas de abuso que muitas Dianas sofrem ao longo de suas vidas. Mas também o recurso de flashbacks por sua vez vem para suavizar a escrita e tirar o leitor dos momentos de tensão do hospital.

Você menciona que o livro trata também da frieza dos homens, da instrumentalização da medicina e do estigma do câncer. Como essas questões atravessam a narrativa e o corpo da personagem?

Esta frieza, acredito que seja por ainda estarmos vivendo numa época em que o machismo impera, onde a medicina tem que se humanizar mais. Ainda há muitos médicos homens brancos e que se acham superiores aos pacientes. A personagem Diana é fruto desse mundo e traz com elas as marcas em seus peitos. Claro que sempre há exceções.

A escrita parece ocupar um lugar de resistência e reconstrução na sua trajetória. Em que medida escrever Montanhas de Diana foi também uma forma de cura?

Com certeza na primeira versão do livro foi uma escrita de cura e libertação, à medida que a escrita foi se consolidando ela já estava em outro estágio, o da superação. Na primeira versão do livro havia um personagem que largaria a mulher depois do diagnóstico. Assim como na minha vida real. Percebi que na segunda versão não precisaria mais dele. Já havia me curado. Acredito que toda escrita tem poder de cura, seja de temas fraturantes ou não.

Como sua formação acadêmica em História, Crítica Literária e Escrita Criativa influenciou a construção da narrativa e da linguagem do livro?

Sem dúvida todas essas minhas formações influenciaram na escrita desse livro. Sem elas talvez teria sido outro modo de contar. Acredito que o trabalho com a palavra, a fluidez da escrita, minhas leituras e pesquisas do tema foram de muita valia para essa escrita. Da história eu trago a mitologia para dentro do livro com a personagem Diana. Da Escrita Criativa eu trago a construção da personagem Central e técnicas de escrita como começar o livro em Média rez. Da crítica literária eu trago alguns recursos como a intertextualidade por exemplo. Sou grata a todas as minhas formações e em especial a meu Doutorado que está prestes a ser concluído em processo de criação o que faz da minha escrita ser carregada desses aprendizados.

Durante a leitura, o corpo da mulher e sua transformação são temas centrais. O que você gostaria que as leitoras (e leitores) levassem dessa reflexão?

Eu gostaria que elas fizessem uma reflexão sobre seu próprio corpo, como essas marcas ao longo da vida vão somatizando internamente e acabamos adoecendo. Que esse seja um livro que nos faça acreditar nessa força feminina e que nada e ninguém possa nos afetar. Que seja para além de leitoras ou leitores que atravessaram ou estão atravessando por esse momento do câncer, mas que possa ser uma reflexão de como estão suas vidas hoje e como podemos passar por momentos difíceis e superá-los.

Você lançou o livro na FLIP 2024, um espaço de grande destaque literário. Como foi essa experiência e qual tem sido o retorno do público até agora?

Eu fiz um pré-lançamento para amigos na livraria Bíblia elogo de cara foi um sucesso. Em seguida para o público em geral na Flip. Para a surpresa ele alcançou diferentes faixas etárias e tenho tido feedbacks positivos sobre como trabalhei de forma suave um tema tão impactante. Muitos homens também se sensibilizaram com o tema, o que me deixa bastante feliz. Um livro de literatura que se lê de uma vez. No meu site www.escrevarte.com vocês podem constatar como o público está aceitando Montanhas de Diana que carrega para mim um tema tão caro. Pois além da minha experiência sou ativista na causa do câncer de mama.

Livro: Montanhas de Diana, Editora: Quelônio

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SERVIÇO – Blog: http://blogentreaspas.com – Instagram: @blog_entreaspas

Montanhas de Diana

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