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Anna Maria Mello

Os Lobos, Revista Sarau

Quando Tereza se deparou com Adriana sentada na escadaria do prédio, entendeu na hora. A menina vestia a calça vermelha com listra azul marinho, uniforme do Cristóvão, e apertava a mochila contra o peito, a sombra do corrimão ocultando os olhos. Tereza perguntou ei, tudo bem? Adriana levantouse e como um foguete, correu rumo ao terceiro andar, onde morava.

Tereza mudara-se há pouco mais de três meses para Caxias do Sul, fugida de Pelotas, sabendo que a família ainda não possuía uma linha telefônica e que o contato com eles daquela distância seria quase inviável. Buscava recomeçar a vida em uma cidade um pouco maior, onde já arrumara emprego como secretária na Guerra, empresa que produzia implementos rodoviários nos anos 1970.

Vinha percebendo Adriana pelas ruas e pelo prédio, onde por vezes ouvia a mãe chamando a menina pela janela do terceiro andar, logo abaixo do apartamento 403, que alugava. Se preocupava com a menina que mesmo no meio da primavera usava mangas compridas e, cabisbaixa, nunca respondia aos cumprimentos de ninguém.

Mesmo na penumbra da escadaria, Tereza reparou em um hematoma roxo escuro se sobressaindo por entre os cabelos claros da menina, logo acima da gola e abaixo da orelha. O tipo de marca difícil de esconder e isso Tereza sabia por experiência própria. No espaço vazio deixado pela menina antes sentada nos degraus, ela encontrou um caderno encapado com capricho. Ao abrir, folhas sem pauta recheadas com desenhos bonitos, ainda que sem cor, feitos com lápis grafite 2B. Se surpreendeu com a habilidade da menina que não devia ter mais de dez anos e decidiu que aquele caderno seria a ponte para alcançá-la.

Dias depois, tocou o ombro da menina que, pelas grades do prédio, observava as outras crianças do bairro envolvidas em uma partida de taco.

— Encontrei teu caderno na escada esses dias. — Disse Tereza. — Tu és muito talentosa.

Adriana respondeu com um olhar assustado e Tereza reparou na mancha então amarelada ainda presente em sua clavícula, despontando discreta e brutal pela gola do uniforme. Tereza se apresentou como a vizinha do andar de cima e convidou a menina para buscar o caderno quando quisesse. É só bater no 403, tô sempre em casa esse horário. Viu Adriana fazer que sim com a cabeça, voltando a atenção para a partida de taco da gurizada.

Tereza não achou que a menina apareceria a sua porta tão cedo, porém se surpreendeu com a visita já no dia seguinte. Abriu a porta para que Adriana entrasse em seu espaço seguro, o semblante assustado se suavizando conforme familiarizava-se com o entorno. A mulher ofereceu grostoli a menina, recém frito na padaria da esquina e que Tereza comprou por acaso, motivada por uma ansiedade hormonal que a fazia desejar doces e frituras. Tirou da gaveta da cozinha um pacote de Kisuco de uva e misturou com água direto da torneira, servindo um copo para si, e outro para Adriana, que sentara-se a mesa forrada com plástico poá.

O caderno foi resgatado sem que a artista dissesse palavra, nem mesmo agradeceu pelo doce e pelo suco, porém sorriu ao sair, quando Tereza reforçou que voltasse sempre. A partir de então, uma amizade silenciosa se estabeleceu entre elas. Adriana batia a sua porta duas ou três vezes na semana, ao fim do dia, largava a mochila em um canto da sala e partilhava um lanche preparado por Tereza na cozinha. As palavras foram preenchendo o apartamento a conta gotas. Primeiro um obrigada, depois um boa tarde, então Tereza perguntou como foi a aula e Adriana contou sobre a dificuldade que tinha com matemática.

Entre sucos e bolos, Tereza se tornou tutora involuntária de uma menina que mal conhecia. Se esforçava para lembrar das lições do colégio, não assim tão distantes, estando ela na casa dos vinte e poucos anos. As visitas irregulares se tornaram diárias e Tereza se apressava na saída do trabalho para não perder a condução e deixar sua jovem amiga a espera. Nestes fins de tarde, mantinha-se atenta as evidências ocultas pelas roupas cada vez mais fechadas que Adriana usava, mesmo que a primavera já tivesse se tornado verão.

Em uma das visitas Adriana, que sempre ia embora antes do por do sol, se demorou. Minha mãe está viajando hoje. Disse com uma voz miúda e Tereza deixou que a menina ficasse. Quando deu oito horas e nem a mãe, nem o pai apareceram procurando pela criança que folheava A hora da estrela em seu sofá, Tereza decidiu preparar a janta.

Reparou, quando sentaram-se a mesa, que a respiração de Adriana subira do peito aos ombros. Acabou perguntando sobre a viagem da mãe, descobriu que a vizinha fora resolver questões de família no interior. E o teu pai?

— Ele não é meu pai. — Adriana olhou para o relógio acima da porta e rasgou um pedaço do pão com margarina e mel antes de levá-lo a boca, a doçura escorrendo por entre os dedos da criança.

Tereza não sabia, mas em casa, Adriana estaria encolhida dentro da despensa. Lá havia construído um local secreto, improvisado. Levou seu caderno de desenho com o lápis 2B, uma lanterna, o terço que ganhou da avó na primeira comunhão, meses antes de sua morte. Lá dentro não conseguia ficar em pé, prateleiras cheias de farpas pendiam sobre a cabeça da menina. Ainda assim, sentia-se segura no espaço estreito, a única porta da casa que viera com chave e permitia que Adriana se trancasse. Ela gostava do modo como as claridade atravessavam as frestas da porta, quando a luz da cozinha estava acesa, porém isso indicava perigo, o lobo estava próximo e com fome. Quando ele a pegava, doía demais.

Fazia semanas que Adriana não precisava se chavear na despensa, graças as horas passadas no apartamento 403. Naquela noite, estava com medo de voltar para casa e se ver sozinha com o lobo. Não sabia como falar sobre o assunto com Tereza, mas queria que ela entendesse. Aquele jantar era um pedido de socorro.

— Quando tua mãe volta, Adri?
A menina deu de ombros, não sabia. Tudo o que a mãe disse ao sair naquela manhã foi que passaria uns dias fora, pediu que ela se comportasse e foi embora com o marido, que a deixaria na rodoviária no caminho para o trabalho.

Tereza não disse mais nada, tirou a mesa e ligou a televisão na sala, era hora da novela das oito, ou seja, hora de criança estar indo pra cama. Ainda assim, assistiram um capítulo de Pai Heroi, novela da Globo. A imagem de Tony Ramos entrava e saia de esquadro em função do mau contato que fez Tereza se levantar e dar batidinhas na lateral da caixa antes de mexer na antena. O ator desapareceu por completo, sendo substituído por uma imagem de ruido cinza, ainda que sua voz soasse clara pela casa. Quando conseguiu retomar o sinal, a cena já havia passado e a TV exibia um close do rosto de Glória Menezes. Uma batida firme na porta a fez soltar a antena e perder o sinal mais uma vez, dividindo o rosto da atriz em duas partes, uma cromática e outra esverdeada.

— O de casa? — Uma voz masculina atravessou a porta, seguida por outra batida.

Adriana se encolheu no sofá, usando uma almofada bordada como escudo. Tereza desligou a televisão.

— Adriana! — Uma única pancada forte na porta. — Tá na hora de ir pra cama e deixar a vizinha em paz. Tua mãe já ligou duas vezes.

A menina não se mexeu, seu olhar encontrou o de Tereza, também estática, em pé no meio da sala. O desespero que encontrou ali fez com que a mulher se movesse sorrateira até a porta. Uma batida mais forte lhe causou um sobressalto, viu a maçaneta se mover na tentativa do lobo de entrar na casa.

Tereza fez sinal para que Adriana puxasse a cordinha do abajur. No escuro completo, passou o trinco, deixando que o homem batesse até desistir. Tereza reconheceu nele o lobo da própria infância

Por Anna Maria Mello

Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente. Paulistana, desde 2015 se dedica à literatura. Pós-graduada em Escrita Literária pelo Instituto Vera Cruz. É autora de três livros. Formada em História pela USP, Atualmente, mestranda da PUCSP em Crítica Literária. As letras transformaram sua vida e abriram novos caminhos.

Entrevista para Coluna Cultura em Foco, Jornal Tribuna Liberal De Sumaré

Coluna Cultura em Foco – Por Wesley Silva
Entrevista com a autora Anna Maria Mello @anna.escritora

Redação: Evelyn Ruani – Coordenadora Técnica Educacional das Bibliotecas Escolares do SESI-SP, criadora de conteúdos literários e leitora compulsiva! Apaixonada por livros e palavras.

Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente, paulistana, enveredou-se pelos caminhos da história (USP). Pós-graduada em Escrita Literária, formação de Escritores pelo Instituto Vera Cruz e na PUC-RS, cursou a Oficina de Escrita do professor doutor Assis Brasil, com formação em conto.
Mestre em Crítica Literária pela PUC SP, especializada em Literatura Contemporânea Brasileira e doutoranda em Processo de Criação Literária pela PUC SP. Atualmente participa do Grupo de Pesquisa de Literatura para Jovens da PUC SP(CNPQ). É autora de Cabelos vão Cabelos vêm o que é que a Mamãe tem, coautora do livro Da Janela. Participou de diversas antologias publicadas em âmbito nacional.

Vem comigo conhecer um pouco mais sobre essa autora e sua obra:

Anna, “Montanhas de Diana” traz uma narrativa profundamente pessoal. Como foi o processo de transformar uma vivência tão íntima em ficção?

Para mim a escrita desta ficção foi mais difícil do que outros livros que escrevi. Partir de uma vivência pessoal requereu um maior afastamento, portanto mais versões, e mais tempo de escrita. Achar este limite entre a ficção e real, enfim, encontrar a voz de uma personagem que não sou eu exatamente mais que parte da minha experiência pessoal, demorou um certo tempo e amadurecimento dessa escrita.

A protagonista, Diana, é uma mulher forte e bem-sucedida, mas também esgotada pelas exigências do trabalho e da vida. Em que aspectos ela se aproxima de você e em quais vocês se distanciam?

Diana sou eu e inúmeras mulheres fortes, que criam seus filhos sozinhas e que independentemente de serem bem-sucedidas ou não, trabalham muito e se esquecem de cuidar delas. Me distancio de Diana porque sempre fui unida às minhas filhas, e elas a mim. Nesse livro quis mostrar que a doença não é só da personagem Diana, mas sim de todos os familiares que estão ao redor. Recebi vários e-mails perguntando sobre as atitudes de Mia e Beka, se elas eram minhas filhas e porque me tratavam assim. Mas esquecem que estão lendo uma ficção e os personagens são apenas personagens. Eu os criei para darem um efeito de sentido à leitura, e com eles algumas reflexões.

O câncer de mama é um tema delicado e ainda cercado de tabus. Qual foi o seu maior desafio ao abordar esse assunto de forma tão sincera e poética?

Ah esta foi uma boa pergunta. Antes de escrever qualquer assunto, leio vários livros do mesmo tema. Parto de pesquisas. Faz parte do meu processo de criação. Vai muito além da minha vivência pessoal. Eu queria trazer esse tema do câncer de Mama para a literatura, de uma forma que não fosse um livro difícil de ler, mas ao mesmo tempo queria uma escrita literária. Escrever de uma forma fluida e suave foi um grande desafio.

Além da jornada de tratamento, o livro também mergulha em memórias da infância e juventude. Como essas lembranças ajudam a construir a identidade da personagem e o enredo da obra?

Para encontrar uma forma de construir essa Diana do presente, mergulhei em suas memórias para que o leitor pudesse conhecer um pouco mais sobre ela. Como seu corpo se transformou. Cenas de abuso que muitas Dianas sofrem ao longo de suas vidas. Mas também o recurso de flashbacks por sua vez vem para suavizar a escrita e tirar o leitor dos momentos de tensão do hospital.

Você menciona que o livro trata também da frieza dos homens, da instrumentalização da medicina e do estigma do câncer. Como essas questões atravessam a narrativa e o corpo da personagem?

Esta frieza, acredito que seja por ainda estarmos vivendo numa época em que o machismo impera, onde a medicina tem que se humanizar mais. Ainda há muitos médicos homens brancos e que se acham superiores aos pacientes. A personagem Diana é fruto desse mundo e traz com elas as marcas em seus peitos. Claro que sempre há exceções.

A escrita parece ocupar um lugar de resistência e reconstrução na sua trajetória. Em que medida escrever Montanhas de Diana foi também uma forma de cura?

Com certeza na primeira versão do livro foi uma escrita de cura e libertação, à medida que a escrita foi se consolidando ela já estava em outro estágio, o da superação. Na primeira versão do livro havia um personagem que largaria a mulher depois do diagnóstico. Assim como na minha vida real. Percebi que na segunda versão não precisaria mais dele. Já havia me curado. Acredito que toda escrita tem poder de cura, seja de temas fraturantes ou não.

Como sua formação acadêmica em História, Crítica Literária e Escrita Criativa influenciou a construção da narrativa e da linguagem do livro?

Sem dúvida todas essas minhas formações influenciaram na escrita desse livro. Sem elas talvez teria sido outro modo de contar. Acredito que o trabalho com a palavra, a fluidez da escrita, minhas leituras e pesquisas do tema foram de muita valia para essa escrita. Da história eu trago a mitologia para dentro do livro com a personagem Diana. Da Escrita Criativa eu trago a construção da personagem Central e técnicas de escrita como começar o livro em Média rez. Da crítica literária eu trago alguns recursos como a intertextualidade por exemplo. Sou grata a todas as minhas formações e em especial a meu Doutorado que está prestes a ser concluído em processo de criação o que faz da minha escrita ser carregada desses aprendizados.

Durante a leitura, o corpo da mulher e sua transformação são temas centrais. O que você gostaria que as leitoras (e leitores) levassem dessa reflexão?

Eu gostaria que elas fizessem uma reflexão sobre seu próprio corpo, como essas marcas ao longo da vida vão somatizando internamente e acabamos adoecendo. Que esse seja um livro que nos faça acreditar nessa força feminina e que nada e ninguém possa nos afetar. Que seja para além de leitoras ou leitores que atravessaram ou estão atravessando por esse momento do câncer, mas que possa ser uma reflexão de como estão suas vidas hoje e como podemos passar por momentos difíceis e superá-los.

Você lançou o livro na FLIP 2024, um espaço de grande destaque literário. Como foi essa experiência e qual tem sido o retorno do público até agora?

Eu fiz um pré-lançamento para amigos na livraria Bíblia elogo de cara foi um sucesso. Em seguida para o público em geral na Flip. Para a surpresa ele alcançou diferentes faixas etárias e tenho tido feedbacks positivos sobre como trabalhei de forma suave um tema tão impactante. Muitos homens também se sensibilizaram com o tema, o que me deixa bastante feliz. Um livro de literatura que se lê de uma vez. No meu site www.escrevarte.com vocês podem constatar como o público está aceitando Montanhas de Diana que carrega para mim um tema tão caro. Pois além da minha experiência sou ativista na causa do câncer de mama.

Livro: Montanhas de Diana, Editora: Quelônio

— Versão digital Amazon Kindle
Após ler, comente e avalie pela Amazon — isso faz toda a diferença!

SERVIÇO – Blog: http://blogentreaspas.com – Instagram: @blog_entreaspas

Memória e autoficção | Entrevista para o site Caixa Preta, por Paulo Henrique Passos

O professor de criação literária Stephen Koch escreveu, no seu livro Oficina de escritores: Um manual para a arte da ficção, que “o vínculo íntimo entre ficção e não-ficção é quase tão antigo quanto a literatura”

Pode-se dizer que a nossa convidada de hoje também reconhece esse fato. Mais do que isso, ela se alimenta desse fato para escrever. Por falar em fato, na nossa conversa, falamos sobre as relações entre fato e ficção.

Anna Maria Mello (@anna.escritora) é autora do romance Montanhas de Diana (Quelônio, 2024 @editoraquelonio) que mostra as memórias e desafios de uma mulher que precisa enfrentar um câncer de mama.

Na conversa que tive com ela, falamos sobre o so da memória como recurso literário, diferença entre realidade e ficção na escrita, formação acadêmica e oficinas literárias e sobre muito mais.

Vale ler até o final.

O recurso da memória é muito presente no seu romance Montanhas de Diana.
Qual a importância da memória para a sua escrita literária?

Romance Montanhas de Diana,
de Anna Maria Mello

O processo de criação de cada livro é um livro. Esse foi pensado nesse formato, trazendo essa memória da personagem da infância e da adolescência, da criação do corpo feminino, dos seios dela que vão crescendo, das coisas que ela sofreu também, violências contra o corpo feminino — tudo isso para desencadear o momento presente, que é o câncer.

Associei a momentos de memória mais light, para amenizar um pouco a escrita. Esses flashbacks vêm como uma técnica para tirar o leitor do tempo presente, que é um tempo de tensão, onde ela está doente e internada. Então, vêm como um recurso literário essas memórias.

Como você enxerga a relação entre memória e ficção?

A memória também é uma ficção, porque é o ponto de vista. Pode beirar o real, mas é o ponto de vista do autor que transforma em ficção. Para mim, a memória é um recurso que a gente utiliza para escrever a ficção, mas ela não tem nada a ver com a realidade, porque já é transformada.

Montanhas de Diana é uma autoficção? Fale um pouco sobre isso.

Sim, é uma autoficção. Eu tive câncer, tenho duas filhas, tive amigas que me ajudaram, e muitas passagens são reais da minha história. Mas também há partes ficcionais.

Quarta capa do romance Montanhas de Diana,
de Anna Maria Mello

Foi baseado em fatos reais, mas também tive muito contato com pessoas que tiveram câncer. Sou ativista na causa. Coleti dados para formar o livro. Não é só a minha história, é a história de muitas Dianas. As amigas são personagens ficcionais. Os nomes também. Minhas filhas não são como descrevi. Tem partes baseadas na minha história e outras que são ficcionais ou baseadas em outras histórias.

Diana, na mitologia romana, é a deusa da lua, da caça, da natureza selvagem e dos animais. Ela também é associada ao parto, à fertilidade e à proteção das mulheres. Como foi o processo de dar o nome ao seu romance Montanhas de Diana?

O nome da personagem foi a última coisa que coloquei, porque queria algo muito bem pensado. Diana é parte do meu nome. Isso mistura ficção e realidade. Sou historiadora, fiz um curso na USP sobre mitologia, sou muito ligada à mitologia grega. Gosto muito particularmente, e acho um nome forte, que carrega força. A personagem precisava de um nome assim.

Diana, a personagem central, sendo mãe de duas meninas, se vê entre dois desafios: se cuidar para se recuperar do câncer de mama e cuidar das filhas. Qual você acha que é o maior desafio de uma mãe hoje?

É muito difícil se cuidar e ter filhas nesse momento, ainda mais sem um pai presente. Muitas Dianas por aí não têm suporte familiar. Às vezes o marido larga, ou não há pai. Precisa de uma rede de apoio.

Cabelos vão, cabelos vem, de Anna Maria Mello

A personagem vai para a casa do pai biológico. Minha filha, na época, tinha 15 anos e foi morar com o pai porque eu não estava conseguindo lidar com tudo. Escrevi um livro infantil chamado Cabelos vão, cabelos vêm: o que é que a mamãe tem?, para contar aos filhos que a mãe está doente. Esse livro foi um best-seller e até hoje dou para muitas mães.

A literatura pode ajudar a se identificar com a personagem. Muitas mães cuidam dos filhos e esquecem de si. A personagem trabalhava muito e acabou adoecendo. Às vezes a mulher não faz exame, não faz mamografia após os 40 anos, ou ultrassom a partir dos 35 se houver histórico familiar. Se pegar no início, é mais fácil. No estágio intermediário, como foi o caso da Diana, o tratamento é mais pesado. Por mais que se seja mãe, é preciso se cuidar, independente de tudo.

Você é ativista pela causa do câncer de mama. Como a experiência como ativista influenciou na escrita do seu livro?

Sim, sou ativista. Vi muitas realidades. Me envolvi com pessoas de todos os níveis sociais. É uma doença que nivela as pessoas.

Vi uma menina com 25 anos, de família riquíssima, com câncer agressivo. Mesmo com recursos, sofreu muito, ficou estéreo, perdeu o cabelo, o namorado a deixou. Também frequentei o SUS, participei de grupos com pessoas com câncer. Às vezes falta até sabonete para o pós-operatório. Eu mesma perdi dentes com o tratamento. O corpo muda: é o dente, a mama, os cabelos, a sobrancelha. A mulher deixa de se reconhecer.

Por isso, essa questão do corpo está presente no livro. Ser ativista me influenciou muito. Fiz pesquisa com mulheres. Essa não é só a minha história — é a história de todas essas mulheres e de suas famílias.

Eu queria que fosse um livro de muitas Dianas, guerreiras, pessoas que lutam contra essa doença. Que esse livro sirva para que outras mulheres se identifiquem com a personagem e tenham força para lutar.

Você fez a Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz e a Oficina de Criação Literária com o professor e escritor Assis Brasil. Qual foi o seu maior aprendizado no estudo da escrita literária?

Mikhail Bakhtin, filósofo da linguagem, historiador e teórico da literatura e da cultura russo

Além da Formação de Escritores e da Oficina, fiz mestrado em crítica literária na PUC e estou finalizando o doutorado. Toda essa formação influencia na escrita com técnicas de fluidez e intertextualidade.

Leio muito, praticamente todos os dias. Sempre fui uma excelente leitora desde a infância, e isso me deu facilidade com a escrita.

Esse livro teve um processo de criação diferente. Havia um personagem masculino que retirei na última hora porque achei que tirava a força da protagonista. A última versão foi muito trabalhada.

Tenho um processo de criação e técnica de escrita para cada livro. Hoje penso muito bem nos personagens e nas suas reações. Estudo personagem filosoficamente, trago Bakhtin, intertextualidade, e outros recursos que vêm das minhas formações. Já estou com novos projetos em andamento, com outros processos de criação, que não têm relação com autoficção.

Entrevista realizada por Paulo Henrique Passos do site Caixa Preta Entrevista, em 13/06/2025

Caixa-preta é um site de entrevista com escritores e escritoras. 
E sendo caixa-preta “qualquer sistema, organismo, função, etc., cujo funcionamento ou modo de operação não é claro ou está envolto em mistério”, representa uma ideia que se aproxima da literatura.

Links: @paulohenrique.passos e caixapretaentrevista.com

Duas vozes, dois corpos: romances de estreia revelam experiências femininas com coragem e sensibilidade

Livros de Anna Maria Mello e Andrea Nunes
Anna Maria Mello e Andrea Nunes lançam livros sobre maternidade e resiliência feminina. Obra de Anna foi lançada na FLIP 2024; Andrea inicia pré-venda com paratextos de Ana Holanda e Vanessa Passos.
Anna Maria Mello e Andrea Nunes lançam livros sobre maternidade e resiliência feminina. Obra de Anna foi lançada na FLIP 2024; Andrea inicia pré-venda com paratextos de Ana Holanda e Vanessa Passos.

Duas estreias literárias brasileiras, escritas por mulheres e centradas em experiências transformadoras do corpo feminino, chegam ao público com propostas que unem ficção, autobiografia e reflexão crítica. Enquanto Anna Maria Mello aborda o câncer de mama como jornada estética, emocional e existencial no romance “Montanhas de Diana” (Editora Quelônio), Andrea Nunes mergulha nas memórias da maternidade real em “Engravidei”, publicado pelo Grupo Editorial Caravana. Ambas as obras são marcadas por narrativas íntimas e honestas que provocam empatia e identificação.

Anna Maria Mello - livro Montanhas de Diana
Anna Maria Mello lança “Montanhas de Diana”, romance que narra a travessia de uma mulher com câncer de mama

Lançado na FLIP 2024, Montanhas de Diana é o novo romance de Anna Maria Mello, escritora, pesquisadora e doutoranda em Processo de Criação Literária pela PUC-SP. Com linguagem lírica e intensa, o livro narra a história de Diana, uma mulher de 45 anos, mãe de duas adolescentes e produtora de eventos, cuja rotina agitada é interrompida pelo diagnóstico de câncer de mama.

A partir dessa ruptura, Diana é forçada a revisitar seu passado e enfrentar a transformação do próprio corpo, os efeitos colaterais do tratamento e os descompassos da vida familiar e afetiva. Inspirado em vivências da própria autora, o romance é, ao mesmo tempo, um relato corajoso e poético sobre doença, feminilidade e reinvenção. “Montanhas” que antes pareciam intransponíveis são vencidas através da reconstrução da identidade e da escuta das memórias.

O livro denuncia também a frieza da medicina, o estigma em torno do câncer e a violência simbólica que recai sobre corpos adoecidos e femininos. Anna, que já publicou livros infantis, antologias e é mestre em Crítica Literária pela PUC-SP, utiliza sua experiência como pesquisadora e escritora para dar à narrativa profundidade e força emocional.

Instagram: @anna.escritora e @escrevarte.ssp

Serviço:

Livro: Montanhas de Diana
Editora: Quelônio

Número de páginas: 152 páginas
Onde encontrar:

— Amazon— Editora Quelônio
— Versão digital Amazon Kindle
Após ler, comente e avalie pela Amazon — isso faz toda a diferença!
Livro Engravidei, Andrea Nunes
Andrea Nunes estreia na ficção com “Engravidei”, romance sobre a maternidade real e a reinvenção de si

Com paratextos assinados por Ana Holanda e Vanessa Passos, Engravidei marca a estreia de Andrea Nunes no romance. A autora, que mantém a newsletter autoral Andrea Me Conta, lança a obra em pré-venda pelo Grupo Editorial Caravana. A narrativa parte de uma descoberta simples, mas simbólica: ao encontrar o antigo blog de gravidez, uma mulher revisita, dez anos depois, as angústias e expectativas que marcaram sua primeira gestação.

Ao reler os textos do passado, a narradora se confronta com a mãe que foi e a mulher que se tornou. Em meio a medos, confissões e episódios divertidos, o livro oferece um retrato afetivo e crítico da maternidade real, longe dos idealismos. “O livro traz um contraponto de uma mulher grávida do seu primeiro filho olhando para o seu passado dez anos depois. E esse olhar para o passado traz uma reflexão sobre a capacidade de mudança e reinvenção de si como mulher — não se limitando somente a ser uma progenitora”, afirma Andrea.

Caipira de Jaú–SP, radicada na capital paulista, Andrea é publicitária, marqueteira e sapateadora nas horas livres. Aos 40 anos, decidiu investir na escrita como forma de reconexão consigo mesma — e encontrou voz própria no humor sensível e na sinceridade com que trata as alegrias e contradições da maternidade. Engravidei é baseado em fatos e dialoga diretamente com mulheres que também aprenderam a se refazer nas entrelinhas da rotina e do cuidado.

Instagram: @andreameconta
Newsletter: andreameconta.substack.com

Serviço:
Livro: Engravidei
Grupo Editorial Caravana

Número de páginas: 144 páginas

Onde encontrar: << clique aqui >>

Acompanhe os depoimentos do livro Montanhas de Diana

Saindo de dentro das salas de aula sobre auto ficção, uma dor de não só uma, mas muitas Dianas. Acompanhamos um relato sensível de memórias em que diferentes tempos se entrelaçam.
– Cecilia Almeida Salles, doutora em Linguística Aplicada e Estudos de Línguas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde atualmente ministra aulas do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica. Também é coordenadora do Centro de Estudos de Crítica Genética da PUC/SP.

Acabei de terminar de ler teu livro! Adorei… peguei ele ontem e maratonei até acabar! Achei envolvente, emotivo… muito boa escrita, chorei duas vezes comovida pelos relatos… um trabalho muito bom! Obrigada por compartilhar essa história tão especial… fico esperando pelo próximo! Com certeza indicarei para todos os meus amigos! Beijos com carinho,
– Andréa Scremin, Engenheira

Oi Anna, li seu livro na manhã de ontem, muito bom! Você é excelente narradora. O leitor conhece a personagem também pelo que ela não diz e tem muito esse subtexto no seu romance. Parabéns! Me pegou e não consegui largar.
– Carlos Lotto, Arte educador

Delícia de livro! Você não consegue parar de ler! Leitura de uma sentada! Amei o livro apesar de me incluir como uma das personagens e reviver os momentos angustiantes. Ana querida, suas costuras do relato com o passado no vai e vem são acalentos para o coração! Amei o seu livro! Muito bem escrito, muito verdadeiro e muito cativante! Parabéns!
– Carla Anauate, Psicóloga

Muito impressionada com a clareza com que a Anna descreveu nessa obra tão verdadeira sobre o câncer de mama. Leitura obrigatória para todos que buscam leituras sobre o assunto, o qual exige clareza e verdade.
– Ruth Aquilino, Advogada

Neste fim de semana com aquele friozinho resolvi fazer um brigadeiro quentinho e ler seu livro.
Então, sentei no sofá e nesta tarde devorei o brigadeiro juntamente com seu livro… uma verdadeira refeição literária! Adorei sua escrita, leve e singela, onde a leitura flui e se torna muito prazerosa. Parabéns!
– Clicie Weissheimer Carneiro Pastorello, Fonoaudióloga e Gastróloga

O livro é de uma delicadeza… essa é a palavra! Suave como a autora. Engoli o livro em poucas horas. Um ensinamento de vida. Uma revisitação aos detalhes de quem só passou por uma experiência parecida consegue se identificar. Uma leitura para todos!
– Maria Beatriz Catani, Bibliotecária

A autora narra por meio de reflexões sinceras, profundas e emocionantes, com uma escrita leve, a sua batalha e vitória frente a uma doença difícil de curar, com percalços duros de serem encarados. Em meio ao seu drama, ela consegue relacionar o momento que vivia com suas memórias de vida com a maestria que lhe é peculiar. Acompanhar a trajetória rumo à cura de câncer de mama através das palavras da Anna é um mergulho em sensibilidade, energia e informação. Na narrativa, os desafios de quem passa por isso são traduzidos com simplicidade, e cada página parece carregada de emoção. Uma leitura muito gostosa apesar do tema.
– Vera Caminada, Fotógrafa

>> Saiba mais sobre o livro Montanhas de Diana <<

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Novo livro: Montanhas de Diana, por Anna Maria Mello

Novo livro: Montanhas de Diana - Anna Maria Mello

Primeiro romance da escritora Anna Maria Mello é relato da notícia de um câncer e das decisões dramáticas — de saúde e estética — implicadas no seu tratamento.

Montanhas de Diana é uma narrativa sobre a jornada de uma mulher após receber o diagnóstico de câncer de mama e ter de enfrentar o tratamento e as mudanças estéticas e emocionais que vêm com os procedimentos médicos exigentes e transformadores.

>> Acompanhe os depoimentos do livro Montanhas de Diana <<

Título: Montanhas de Diana
Autora: Anna Maria Mello
Editora: Quelônio
Gênero: romance
ISBN: 978-65-87790-80-0
Formato: 14 x 20 cm
Páginas: 156
Preço: R$ 60

A protagonista do romance Montanhas de Diana é uma mulher bem-sucedida, mãe de Mia e Beka, duas filhas adolescentes. Aos 45 anos, separada há mais de uma década, está sempre atarefada e angustiada pela profissão que escolheu: produtora de festas e casamentos, responsável pelo cerimonial, receptivo e decoração dos ambientes.

A certa altura, esgotada pelo trabalho que lhe desviou da carreira acadêmica, Diana descobre um câncer de mama que a fará repensar a vida, enfrentando não apenas internações, cirurgias e tratamentos, mas também os impactos estéticos e emocionais da doença.

Anna Maria Mello faz um relato ficcional de inspiração autobiográfica, ao mesmo tempo sincero e repleto de imagens tocantes, uma narrativa corajosa sobre a experiência do câncer e seu tratamento. A autora atravessa paisagens acidentadas, montanhas que pareciam intransponíveis, como as dores, o sofrimento, a reorganização familiar, a revisão do passado e as mudanças no corpo e nas perspectivas de futuro.

Além das reviravoltas que o tratamento lhe impõe, Anna Maria Mello constrói um relato de memória, em que momentos da infância e da juventude afloram para mostrar como a condição feminina e a identidade da personagem vão sendo construídas e podem ser ameaçadas não apenas pelo adoecimento, mas pela frieza dos homens, pela instrumentalização da medicina, pelo preconceito e pelo estigma do câncer.

Nessa jornada, o poder da condição feminina não cessa de mostrar sua força. Os símbolos de fertilidade, feminilidade, beleza e coragem vão encontrar respaldo em figuras míticas: uma das explicações da mitologia antiga para o surgimento da Via Láctea vem do leite que serviu de alimento a Héracles, proveniente do seio da deusa Hera; e outra divindade, Diana, que dá título ao romance, deusa da Lua e da caça, combate seus inimigos de peito à mostra, em sinal de franqueza e coragem.

Montanhas de Diana é uma história de resistência e resiliência, um relato que, com a habilidade narrativa da autora, é capaz de tocar qualquer pessoa, tenha ou não proximidade com a experiência do câncer de mama ou qualquer enfermidade semelhante. Mas aqueles que enfrentaram a doença e as exigências de seu tratamento, como os efeitos colaterais de quimioterapias e radioterapias, irão se reconhecer e se emocionar com a objetividade com que a autora desmistifica e enfrenta esses desafios.

Como diz a professora Andrezza Postay na orelha do romance: “Este livro não é apenas um relato sobre a luta contra o câncer, mas uma celebração da vida e da capacidade de encontrar amor por si mesma diante de qualquer adversidade. É um convite para, junto a Diana, descobrir que mesmo frente as montanhas mais íngremes, há sempre um caminho possível.”

A professora de escrita de não ficção Ingrid Fagundez destaca, na quarta capa do livro, a metáfora dos seios como “montanhas que possuímos e nos possuem” para valorizá-los para além de sua dimensão estética como elementos constitutivos da história e da identidade de uma mulher.

O projeto gráfico do livro é de Rafael Marcon. A capa é de Sílvia Nastari, a partir de pintura de Ismael Nery. Edição de Bruno Zeni.

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Anna Maria Mello, paulistana, é graduada em história pela Universidade de São Paulo (USP). Cursou a pós-graduação em formação de Escritores pelo Instituto Vera Cruz e a oficina de escrita de Assis Brasil na PUC-RS. É mestre em Crítica Literária pela PUC-SP e doutoranda em Processo de Criação Literária pela mesma universidade. Faz parte do Grupo de Pesquisa de Literatura para Jovens (PUC-SP/CNPQ). É autora de Cabelos vão, cabelos vêm: o que é que a mamãe tem (2017) e coautora do livro Da janela (2019). Montanhas de Diana é seu primeiro romance.

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Uma carta sem resposta

Uma carta sem resposta

Para Bertha que sempre será querida.

Não escrevo para lhe pedir perdão, mas para perdoar a mim mesma. Um dia se propuser a lê-la, talvez surpreenda com minhas confissões .O que cabe à mim é esse momento da escrita, o que vem depois não me interessa. Na ocasião do rompimento de nossa amizade, buscava no Diego, algo que faltava em mim. Nada me satisfazia, ao ponto de não discernir o que era certo. Havia me transformado em alguém obcecada por reconstruir uma família .Sabe daquelas de contos de fada.

Na época que nos conhecemos erámos muito parecidas, ambas recém separadas, o que queríamos eram momentos de distração. O objetivo era qualquer coisa que nos tirasse da rotina. Complementávamos como, cama e cobertor, vaso e flor, vestido decotado e peitos abundantes. Seus gostos se tornaram os meus, sua casa era a minha e a minha a sua, tínhamos uma a outra, como irmãs gêmeas ligadas a mesma placenta. Acreditava que nunca iriamos nos separar. Erámos o sagrado como mães, protegíamos ferozes nossos lares,e o profano nos labirintos das madrugadas. Aos poucos, independente de nossos parceiros, criamos uma cumplicidade. Trocávamos confidencias e falávamos de outras pessoas como se focemos o centro do universo. Eu mais do que você. Naquela época antes de atender seus telefonemas já sabia que era hora da fofoca.Com o passar dos anos fui perdendo a alegria e o desejo da diversão. Não fui honesta para lhe dizer, o que se passava comigo. Naquele momento o medo de perdê-la era maior. Na carreira, escolhas do passado assombravam. Amargurava ter sido abandonada por pais biológicos Dizia estar bem, quando perguntava a respeito. Com a morte da mãe que me criou, a situação agravou. Rompeu-se o elo que unia minha irmã, marido e família. Apesar de você não tê-la conhecido, era para mim o reflexo distorcido desse elo, Formou-se um paradoxo. O vazio transformou meus dias em um tapete eu uma cópia barata de Penelope. Sobre isso nunca falei. Queria transparecer leve, descongestionada, enquanto nas veias o sangue cristaliza. Criou-se um espaço onde Diego pode me puxar para além da correnteza em um mar que a tempo vinha engolindo água me deixando ser tragada até naufragar.

O traço de minha escrita é o resultado dessas veias. Nesse momento que assino, já não pertenço ao corpo que compartilha as nossas lembranças. A cada palavra os contornos das letras pulsão expurgando o não dito. O corpo dobra-se sobre o papel como se quisesse depositar sobre ele o peso do tempo que não volta mais. E a ele só cabe a memória.

São Paulo, 20 de novembro de 2015.

Por Anna Maria Mello

Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente. Paulistana, desde 2015 se dedica à literatura. Pós-graduada em Escrita Literária pelo Instituto Vera Cruz. É autora de três livros. Formada em História pela USP, Atualmente, mestranda da PUCSP em Crítica Literária. As letras transformaram sua vida e abriram novos caminhos.

Um nome qualquer

Poderia se chamar Júlia, Laura, Luísa, qualquer um desses nomes comuns que se repetem na lista de presença do colégio. Chamava-se Vanessa. Soava mal aos ouvidos, e isso a irritava. Uma vez ouviu que Vanessa parecia nome de puta, dessas que põem nome falso na internet. Retrucou, apesar de ser uma daquelas garotas de pouca fala, de cara esbranquiçada por nunca tomar sol. Nos dias nublados, os ventos vindos do mar eram a única coisa que lhe trazia paz. Ainda bem que morava perto da praia. Não parecia muito inteligente, nem boba demais. Apesar de os colegas a verem todos os dias no colégio, em outro lugar era possível que não a reconhecessem. Tampouco suas roupas se destacavam. Sempre vestia uma camiseta, que poderia ser a mesma, e um jeans, daqueles que nem rasgo tinham. As notas serviam só para passar de ano. Ninguém sentia sua ausência.

Em casa, as brigas entre seus pais eram uma constante. Vanessa não se importava mais com os conflitos do casal. Refugiava-se em seu quarto e isso lhe bastava. A mãe havia desistido de fazê-la comer. Apesar de estar magra demais e de sua aparência cadavérica. O pai chegava sempre depois das dez horas da noite, sequer percebia que ela há dias não se sentava à mesa do jantar.

Até que em uma manhã, durante a aula de Literatura, enquanto a professora lia um trecho de o Alienista, Vanessa caiu no chão, rígida, com os braços colados ao dorso, pernas trepidantes, olhos revirados. Uma espuma lhe saia pela boca. Uma das colegas veio depressa em sua direção.

– Segura a língua dela – gritou Luísa.

– O que é tá rolando? – berrou Helena.

– Ela desmaiou. – respondeu Edu.

Luísa afastou as amigas com os braços. A professora tentou acalmar a classe. Em seguida, correu em direção a Vanessa. Segurou firme sua cabeça, apoiando-a em uma mão; com a outra, agarrou a língua. A professora pediu ajuda. Mandou um aluno correr na enfermaria. Não foi necessário. A gritaria chamou a atenção da enfermeira, que logo apareceu. Um resto de baba escorreu pelo canto da boca e molhou a gola da camiseta de Vanessa. A enfermeira levantou a cabeça da menina pela nuca, enquanto a professora limpava sua baba. Alguns segundos depois, o corpo já estava relaxado sobre o chão. Aos poucos, ela voltou a respirar. O ar com odor desagradável embrulhou o estômago de Vanessa e a deixou mais pálida do que antes.

– Melhor avisar os pais, temos que levá-la ao hospital – disse a professora.

Vanessa, ainda tonta, percebeu que a professora estava ao seu lado. A ambulância demorou a chegar. Saiu da sala amparada pela professora e pela enfermeira do colégio. As duas ajudaram a coloca-la em uma maca, enquanto o enfermeiro da ambulância tomava a frente da situação. Vanessa, meio tonta, já deitada na maca, apertou o anel de pedra que tinha ganho de seu pai nos seus quinze anos, recém feitos. Apertou tanto que chegou a roxear o anelar.

No hospital, uma outra enfermeira entrou no quarto. Dependurou uma medicação em um suporte ao lado. Uma picada no braço direito fez com que Vanessa despertasse, uma lágrima escorreu pelo seu rosto, odiava picadas. A lembrança da queda lhe veio à cabeça. Parecia real. A marca roxa do anel no anelar confirmou.

A mãe já estava no quarto. Sentada no sofá de pernas cruzadas, segurava o celular em uma das mãos, como algo precioso. Vanessa a ouviu pedir um horário para fazer as mãos e o cabelo, precisava fazer uma hidratação. Virou para o lado, fez careta, procurou pelo pai, deveria estar ocupado demais no trabalho.

Vanessa nunca tinha percebido como a voz de sua mãe a irritava. O lençol áspero lhe causou arrepio. Olhou para suas mãos, viu o roxo do anelar, desta vez sem o anel. A mãe desligou o telefone, foi até o banheiro, devia estar retocando a maquiagem.

Na frente da cama, um quadro dizia “Alto risco de queda”. Logo abaixo, aquele seu nome. E o sobrenome.

Por Anna Maria Mello

Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente. Paulistana, desde 2015 se dedica à literatura. Pós-graduada em Escrita Literária pelo Instituto Vera Cruz. É autora de três livros. Formada em História pela USP, Atualmente, mestranda da PUCSP em Crítica Literária. As letras transformaram sua vida e abriram novos caminhos.

Fato

Minha mão não é leve
Imóvel sobre o papel
Procura a palavra
que na carne se inscreve

Boca de lábios fugidios
Que no interior soletra
mundo às avessas
contornos sombrios

Na memória recrio
O trajeto de um sujeito
De vívidas manhãs
Tecidas por um fio

Entre encruzilhadas num ato
Sem Drummond sem Pessoa
Me deparo com um fato
A folha em branco

Por Anna Maria Mello

Pãe

Márcio, aos cinco anos, já fazia contas de subtração. Certo dia, foi a uma venda, próxima de sua casa. Fez a conta de cabeça. O comerciante percebeu que ele estava correto, por isso ganhou um pacote de balas de presente. Nunca esqueceu esse dia. Anos depois, ao prestar vestibular, escolheu Administração Pública na GV, se destacando como excelente aluno, o que logo ao se formar lhe rendeu um cargo de funcionário público no banco do Brasil. Local onde conheceu sua primeira namorada. Casou-se no mesmo ano que ganhou a promoção para gerente. Com ela, teve três filhos: Laura, Lara e Lucas. No dia em que Lara completou 13 anos, no carro, voltando da festa do boliche, sua esposa sentiu-se mal. O braço esquerdo enrijeceu e a boca entortou para o mesmo lado. Márcio correu para o hospital, mas o infarto foi fulminante. Aos 45 anos, Márcio se viu só no mundo com os seus três filhos. Resolveu que deveria ter um hobby. Passando a pé pela rua do trabalho, viu uma placa de escola de dança. Nela estava escrito: venha fazer uma aula gratuita de salsa. Márcio resolveu testar. Adorava coisas free. Contou os passos. Descobriu que levava jeito para a coisa. Em um dos giros, olho no olho, se apaixonou por Lúcia, a professora de salsa. Depois de alguns dias, passaram a frequentar um bar, após as aulas. Passado um mês, estavam namorando. Em casa, tudo continuava igual. Márcio acumulava o papel de “Pãe”, palavra que se aplica para quem exerce as funções de pai e mãe. Ele continuou levantando duas horas mais cedo para preparar o dejejum: café, leite, pão, ovos mexidos e bacon, que eram sua especialidade. Ao redor da mesa conversava sobre assuntos do dia anterior. Márcio nunca mencionou Lúcia para os filhos em respeito à morte recente de sua esposa. Gostava de ver, que em meio a risadas, lambiam os dedos encharcados de gordura e limpavam na toalha que Márcio fingia não ver para não estragar aquele momento.

Até que em uma manhã, o dia começou diferente. Lara não tocou nos ovos, porque estava ansiosa para sua apresentação na peça de teatro do colégio. Lucas acordou atrasado e só conseguiu tomar o leite. Márcio não viu Laura, lembrou que ela tinha dormido na casa de uma amiga e que lera o bilhete no aparador, que dizia: Vou direto da faculdade para o teatro, encontro vocês lá, guarda lugar bem na frente pra mim. Love u. No caminho para a escola, Lara só falava da peça. Seu papel como atriz principal e como ela desejava que sua mãe estivesse presente naquele momento.

Lucas interrompeu Lara dizendo:

-Eu não quero ir. Vou ficar na casa do Filipe, depois da aula.

– Tá, não enche Lucas. Não quero você zoando na minha peça.

Antes de bater a porta do carro, Lara disse:

-Pai, eu vou direto com a turma do teatro. Não se atrase, please.

Márcio fez com a mão o sinal de positivo e seguiu para o banco, como era de rotina.

Ao chegar, tomou mais um café e seguiu em direção à sua sala. Em frente à mesa já havia uma senhora sentada aguardando.

– Bom dia Sr. Márcio, vim pedir um empréstimo. Você não vai negar, né?

Márcio abriu o computador e percebeu que estava sem sistema. Pediu que ela voltasse mais tarde, mas ela insistiu em aguardar. O dia estava prometendo.

A senhora desatou a contar sobre sua história, que havia separado e o marido não pagava a pensão da filha, e que ela havia assumido todas as despesas da casa. Márcio ouviu a história. Sabia que não poderia se envolver, era parte de sua profissão. Mas a senhora não parava de falar. Márcio pegou o celular. Viu uma mensagem de Lúcia. Abriu debaixo da mesa. Leu. Nela estava escrito: Não esqueça do happy hour, às 19h, hoje, em casa. Não se atrase, tenho uma coisa importante para te contar. Márcio achou melhor não responder, empurrando o celular debaixo de uma pilha de contratos. Pensou na apresentação da filha, às 19h. A senhora à sua frente, parecia determinada a esperar. O telefone interno tocou. A voz do rapaz da recepção dizia ter mais três pessoas aguardando. Ela, irredutível. Márcio digitou a senha no computador. Nada. Pegou o celular. Outra mensagem de Lúcia, dizendo: Vou colocar a música de salsa que gosta para dançarmos juntos. Os amigos vão ver como você está se saindo bem. Sou boa professora né? Inclusive de outras cositas. kkk.

Márcio corou, lembrou das brincadeiras que fazia na cama com Lúcia, de seu corpo de curvas fartas, bunda enrijecida, e de como ela fazia sexo oral bem. Nunca tinha sentido uma boca tão gostosa antes. Precisava responder algo. Achou por bem mandar um Mimes de positivo.

Depois de uma eternidade, a senhora desistiu. Voltaria mais tarde. Márcio respirou. O celular acusava nova mensagem. Dessa vez, de Laura. Perguntava se tinha visto o bilhete e que ele não esquecesse de pegar lugar na frente. Tinha prova na faculdade e chegaria encima do horário. Ele respondeu, enviando um meme de positivo e um coração. O rapaz da recepção avisou que o sistema havia voltado. Chamou o próximo cliente que tinha dúvidas sobre seus investimentos. Fez novas projeções de mercado e mostrou a cesta de opções. O cliente demorou a entender e não saiu satisfeito. Márcio pegou o celular, pensou em convidar Lúcia para o almoço. Mas a fila de atendimento estava grande e o horário restrito. Digitou uma mensagem para Lúcia sobre a peça de teatro de Lara e sua importância. Antes de ele enviar, outra mensagem de Lúcia apitou. Lúcia enviou a foto de uma langerie preta e um dizer: Olha o que te aguarda. Márcio pagou a mensagem. Mandou um meme de carinha com coração. Mal engoliu um sanduiche, entrou mais um cliente. Dessa vez, uma jovem para abrir sua primeira conta. Queria saber as diferenças entre aquele banco e um digital que seu namorado tinha recomendado. Ele olhou suas feições e lembrou-se de Lara. Tinha os cabelos castanhos lisos na altura dos ombros e um largo sorriso que fazia mostrar os últimos dentes. Usaria esse sorriso durante a peça?

Márcio explicou as diferenças como se ela fosse uma de suas filhas. Ofereceu café e água, mas a garota não aceitou. Foi embora na certeza de que iria abrir no digital. Márcio bufou. Uma pontada na cabeça lhe fez lembrar da peça de Lara. Não podia desaponta-la. Tomou um remédio para aliviar. Nova mensagem de Lúcia. Uma foto mostrava duas taças e um balde com espumante e três corações. Logo abaixo uma frase dizendo: só falta você!

Márcio respondeu com um coração.

Já eram quase quatro da tarde, quando a mesma senhora voltou. Queria o crédito de qualquer maneira. Ela abriu uma pasta, mostrou comprovantes, mas Márcio precisava checar o que demandava tempo. Quando convenceu a mulher de que não poderia lhe dar o crédito, já passava das cinco e trinta. Uma nova mensagem no celular, dessa vez, do professor de Lucas. A escola já estava fechando, e ele precisava se apressar. Havia esquecido que era dia de rodízio entre ele e a mãe de Filipe. Márcio ainda teria que levá-los antes do teatro à casa de Felipe, filho da melhor amiga de sua falecida esposa. Pegou o carro e foi em direção a escola sem pensar em Lúcia. Lara mandou foto vestida com o figurino. Mandou beijos. Uma fisgada na perna esquerda lhe fez lembrar da morte de sua mulher. Ela saberia como resolver? Se ela estivesse viva não teria conhecido Lúcia?  Ou teria? Melhor não pensar e acelerar. Buscou os meninos com os portões da escola fechados. A mãe de Filipe ligou, perguntando: Onde vocês estão?

Márcio pediu desculpas pelo atraso e disse que deixaria os meninos na portaria. Sozinho no carro, Márcio recebeu novas mensagens, mas não teve coragem de abri-las. Desligou o celular. Foi em direção à marginal. Pegou uma bala do pacote que estava no porta-luvas. Ligou o rádio em sua estação preferida, abriu a janela para sentir o vento bater em seu rosto. Acelerou. Na rodovia, em direção à praia, atirou o celular pela janela.

Por Anna Maria Mello

Montanhas de Diana

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