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Contos

Os Lobos, Revista Sarau

Quando Tereza se deparou com Adriana sentada na escadaria do prédio, entendeu na hora. A menina vestia a calça vermelha com listra azul marinho, uniforme do Cristóvão, e apertava a mochila contra o peito, a sombra do corrimão ocultando os olhos. Tereza perguntou ei, tudo bem? Adriana levantouse e como um foguete, correu rumo ao terceiro andar, onde morava.

Tereza mudara-se há pouco mais de três meses para Caxias do Sul, fugida de Pelotas, sabendo que a família ainda não possuía uma linha telefônica e que o contato com eles daquela distância seria quase inviável. Buscava recomeçar a vida em uma cidade um pouco maior, onde já arrumara emprego como secretária na Guerra, empresa que produzia implementos rodoviários nos anos 1970.

Vinha percebendo Adriana pelas ruas e pelo prédio, onde por vezes ouvia a mãe chamando a menina pela janela do terceiro andar, logo abaixo do apartamento 403, que alugava. Se preocupava com a menina que mesmo no meio da primavera usava mangas compridas e, cabisbaixa, nunca respondia aos cumprimentos de ninguém.

Mesmo na penumbra da escadaria, Tereza reparou em um hematoma roxo escuro se sobressaindo por entre os cabelos claros da menina, logo acima da gola e abaixo da orelha. O tipo de marca difícil de esconder e isso Tereza sabia por experiência própria. No espaço vazio deixado pela menina antes sentada nos degraus, ela encontrou um caderno encapado com capricho. Ao abrir, folhas sem pauta recheadas com desenhos bonitos, ainda que sem cor, feitos com lápis grafite 2B. Se surpreendeu com a habilidade da menina que não devia ter mais de dez anos e decidiu que aquele caderno seria a ponte para alcançá-la.

Dias depois, tocou o ombro da menina que, pelas grades do prédio, observava as outras crianças do bairro envolvidas em uma partida de taco.

— Encontrei teu caderno na escada esses dias. — Disse Tereza. — Tu és muito talentosa.

Adriana respondeu com um olhar assustado e Tereza reparou na mancha então amarelada ainda presente em sua clavícula, despontando discreta e brutal pela gola do uniforme. Tereza se apresentou como a vizinha do andar de cima e convidou a menina para buscar o caderno quando quisesse. É só bater no 403, tô sempre em casa esse horário. Viu Adriana fazer que sim com a cabeça, voltando a atenção para a partida de taco da gurizada.

Tereza não achou que a menina apareceria a sua porta tão cedo, porém se surpreendeu com a visita já no dia seguinte. Abriu a porta para que Adriana entrasse em seu espaço seguro, o semblante assustado se suavizando conforme familiarizava-se com o entorno. A mulher ofereceu grostoli a menina, recém frito na padaria da esquina e que Tereza comprou por acaso, motivada por uma ansiedade hormonal que a fazia desejar doces e frituras. Tirou da gaveta da cozinha um pacote de Kisuco de uva e misturou com água direto da torneira, servindo um copo para si, e outro para Adriana, que sentara-se a mesa forrada com plástico poá.

O caderno foi resgatado sem que a artista dissesse palavra, nem mesmo agradeceu pelo doce e pelo suco, porém sorriu ao sair, quando Tereza reforçou que voltasse sempre. A partir de então, uma amizade silenciosa se estabeleceu entre elas. Adriana batia a sua porta duas ou três vezes na semana, ao fim do dia, largava a mochila em um canto da sala e partilhava um lanche preparado por Tereza na cozinha. As palavras foram preenchendo o apartamento a conta gotas. Primeiro um obrigada, depois um boa tarde, então Tereza perguntou como foi a aula e Adriana contou sobre a dificuldade que tinha com matemática.

Entre sucos e bolos, Tereza se tornou tutora involuntária de uma menina que mal conhecia. Se esforçava para lembrar das lições do colégio, não assim tão distantes, estando ela na casa dos vinte e poucos anos. As visitas irregulares se tornaram diárias e Tereza se apressava na saída do trabalho para não perder a condução e deixar sua jovem amiga a espera. Nestes fins de tarde, mantinha-se atenta as evidências ocultas pelas roupas cada vez mais fechadas que Adriana usava, mesmo que a primavera já tivesse se tornado verão.

Em uma das visitas Adriana, que sempre ia embora antes do por do sol, se demorou. Minha mãe está viajando hoje. Disse com uma voz miúda e Tereza deixou que a menina ficasse. Quando deu oito horas e nem a mãe, nem o pai apareceram procurando pela criança que folheava A hora da estrela em seu sofá, Tereza decidiu preparar a janta.

Reparou, quando sentaram-se a mesa, que a respiração de Adriana subira do peito aos ombros. Acabou perguntando sobre a viagem da mãe, descobriu que a vizinha fora resolver questões de família no interior. E o teu pai?

— Ele não é meu pai. — Adriana olhou para o relógio acima da porta e rasgou um pedaço do pão com margarina e mel antes de levá-lo a boca, a doçura escorrendo por entre os dedos da criança.

Tereza não sabia, mas em casa, Adriana estaria encolhida dentro da despensa. Lá havia construído um local secreto, improvisado. Levou seu caderno de desenho com o lápis 2B, uma lanterna, o terço que ganhou da avó na primeira comunhão, meses antes de sua morte. Lá dentro não conseguia ficar em pé, prateleiras cheias de farpas pendiam sobre a cabeça da menina. Ainda assim, sentia-se segura no espaço estreito, a única porta da casa que viera com chave e permitia que Adriana se trancasse. Ela gostava do modo como as claridade atravessavam as frestas da porta, quando a luz da cozinha estava acesa, porém isso indicava perigo, o lobo estava próximo e com fome. Quando ele a pegava, doía demais.

Fazia semanas que Adriana não precisava se chavear na despensa, graças as horas passadas no apartamento 403. Naquela noite, estava com medo de voltar para casa e se ver sozinha com o lobo. Não sabia como falar sobre o assunto com Tereza, mas queria que ela entendesse. Aquele jantar era um pedido de socorro.

— Quando tua mãe volta, Adri?
A menina deu de ombros, não sabia. Tudo o que a mãe disse ao sair naquela manhã foi que passaria uns dias fora, pediu que ela se comportasse e foi embora com o marido, que a deixaria na rodoviária no caminho para o trabalho.

Tereza não disse mais nada, tirou a mesa e ligou a televisão na sala, era hora da novela das oito, ou seja, hora de criança estar indo pra cama. Ainda assim, assistiram um capítulo de Pai Heroi, novela da Globo. A imagem de Tony Ramos entrava e saia de esquadro em função do mau contato que fez Tereza se levantar e dar batidinhas na lateral da caixa antes de mexer na antena. O ator desapareceu por completo, sendo substituído por uma imagem de ruido cinza, ainda que sua voz soasse clara pela casa. Quando conseguiu retomar o sinal, a cena já havia passado e a TV exibia um close do rosto de Glória Menezes. Uma batida firme na porta a fez soltar a antena e perder o sinal mais uma vez, dividindo o rosto da atriz em duas partes, uma cromática e outra esverdeada.

— O de casa? — Uma voz masculina atravessou a porta, seguida por outra batida.

Adriana se encolheu no sofá, usando uma almofada bordada como escudo. Tereza desligou a televisão.

— Adriana! — Uma única pancada forte na porta. — Tá na hora de ir pra cama e deixar a vizinha em paz. Tua mãe já ligou duas vezes.

A menina não se mexeu, seu olhar encontrou o de Tereza, também estática, em pé no meio da sala. O desespero que encontrou ali fez com que a mulher se movesse sorrateira até a porta. Uma batida mais forte lhe causou um sobressalto, viu a maçaneta se mover na tentativa do lobo de entrar na casa.

Tereza fez sinal para que Adriana puxasse a cordinha do abajur. No escuro completo, passou o trinco, deixando que o homem batesse até desistir. Tereza reconheceu nele o lobo da própria infância

Por Anna Maria Mello

Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente. Paulistana, desde 2015 se dedica à literatura. Pós-graduada em Escrita Literária pelo Instituto Vera Cruz. É autora de três livros. Formada em História pela USP, Atualmente, mestranda da PUCSP em Crítica Literária. As letras transformaram sua vida e abriram novos caminhos.

Uma carta sem resposta

Uma carta sem resposta

Para Bertha que sempre será querida.

Não escrevo para lhe pedir perdão, mas para perdoar a mim mesma. Um dia se propuser a lê-la, talvez surpreenda com minhas confissões .O que cabe à mim é esse momento da escrita, o que vem depois não me interessa. Na ocasião do rompimento de nossa amizade, buscava no Diego, algo que faltava em mim. Nada me satisfazia, ao ponto de não discernir o que era certo. Havia me transformado em alguém obcecada por reconstruir uma família .Sabe daquelas de contos de fada.

Na época que nos conhecemos erámos muito parecidas, ambas recém separadas, o que queríamos eram momentos de distração. O objetivo era qualquer coisa que nos tirasse da rotina. Complementávamos como, cama e cobertor, vaso e flor, vestido decotado e peitos abundantes. Seus gostos se tornaram os meus, sua casa era a minha e a minha a sua, tínhamos uma a outra, como irmãs gêmeas ligadas a mesma placenta. Acreditava que nunca iriamos nos separar. Erámos o sagrado como mães, protegíamos ferozes nossos lares,e o profano nos labirintos das madrugadas. Aos poucos, independente de nossos parceiros, criamos uma cumplicidade. Trocávamos confidencias e falávamos de outras pessoas como se focemos o centro do universo. Eu mais do que você. Naquela época antes de atender seus telefonemas já sabia que era hora da fofoca.Com o passar dos anos fui perdendo a alegria e o desejo da diversão. Não fui honesta para lhe dizer, o que se passava comigo. Naquele momento o medo de perdê-la era maior. Na carreira, escolhas do passado assombravam. Amargurava ter sido abandonada por pais biológicos Dizia estar bem, quando perguntava a respeito. Com a morte da mãe que me criou, a situação agravou. Rompeu-se o elo que unia minha irmã, marido e família. Apesar de você não tê-la conhecido, era para mim o reflexo distorcido desse elo, Formou-se um paradoxo. O vazio transformou meus dias em um tapete eu uma cópia barata de Penelope. Sobre isso nunca falei. Queria transparecer leve, descongestionada, enquanto nas veias o sangue cristaliza. Criou-se um espaço onde Diego pode me puxar para além da correnteza em um mar que a tempo vinha engolindo água me deixando ser tragada até naufragar.

O traço de minha escrita é o resultado dessas veias. Nesse momento que assino, já não pertenço ao corpo que compartilha as nossas lembranças. A cada palavra os contornos das letras pulsão expurgando o não dito. O corpo dobra-se sobre o papel como se quisesse depositar sobre ele o peso do tempo que não volta mais. E a ele só cabe a memória.

São Paulo, 20 de novembro de 2015.

Por Anna Maria Mello

Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente. Paulistana, desde 2015 se dedica à literatura. Pós-graduada em Escrita Literária pelo Instituto Vera Cruz. É autora de três livros. Formada em História pela USP, Atualmente, mestranda da PUCSP em Crítica Literária. As letras transformaram sua vida e abriram novos caminhos.

Um nome qualquer

Poderia se chamar Júlia, Laura, Luísa, qualquer um desses nomes comuns que se repetem na lista de presença do colégio. Chamava-se Vanessa. Soava mal aos ouvidos, e isso a irritava. Uma vez ouviu que Vanessa parecia nome de puta, dessas que põem nome falso na internet. Retrucou, apesar de ser uma daquelas garotas de pouca fala, de cara esbranquiçada por nunca tomar sol. Nos dias nublados, os ventos vindos do mar eram a única coisa que lhe trazia paz. Ainda bem que morava perto da praia. Não parecia muito inteligente, nem boba demais. Apesar de os colegas a verem todos os dias no colégio, em outro lugar era possível que não a reconhecessem. Tampouco suas roupas se destacavam. Sempre vestia uma camiseta, que poderia ser a mesma, e um jeans, daqueles que nem rasgo tinham. As notas serviam só para passar de ano. Ninguém sentia sua ausência.

Em casa, as brigas entre seus pais eram uma constante. Vanessa não se importava mais com os conflitos do casal. Refugiava-se em seu quarto e isso lhe bastava. A mãe havia desistido de fazê-la comer. Apesar de estar magra demais e de sua aparência cadavérica. O pai chegava sempre depois das dez horas da noite, sequer percebia que ela há dias não se sentava à mesa do jantar.

Até que em uma manhã, durante a aula de Literatura, enquanto a professora lia um trecho de o Alienista, Vanessa caiu no chão, rígida, com os braços colados ao dorso, pernas trepidantes, olhos revirados. Uma espuma lhe saia pela boca. Uma das colegas veio depressa em sua direção.

– Segura a língua dela – gritou Luísa.

– O que é tá rolando? – berrou Helena.

– Ela desmaiou. – respondeu Edu.

Luísa afastou as amigas com os braços. A professora tentou acalmar a classe. Em seguida, correu em direção a Vanessa. Segurou firme sua cabeça, apoiando-a em uma mão; com a outra, agarrou a língua. A professora pediu ajuda. Mandou um aluno correr na enfermaria. Não foi necessário. A gritaria chamou a atenção da enfermeira, que logo apareceu. Um resto de baba escorreu pelo canto da boca e molhou a gola da camiseta de Vanessa. A enfermeira levantou a cabeça da menina pela nuca, enquanto a professora limpava sua baba. Alguns segundos depois, o corpo já estava relaxado sobre o chão. Aos poucos, ela voltou a respirar. O ar com odor desagradável embrulhou o estômago de Vanessa e a deixou mais pálida do que antes.

– Melhor avisar os pais, temos que levá-la ao hospital – disse a professora.

Vanessa, ainda tonta, percebeu que a professora estava ao seu lado. A ambulância demorou a chegar. Saiu da sala amparada pela professora e pela enfermeira do colégio. As duas ajudaram a coloca-la em uma maca, enquanto o enfermeiro da ambulância tomava a frente da situação. Vanessa, meio tonta, já deitada na maca, apertou o anel de pedra que tinha ganho de seu pai nos seus quinze anos, recém feitos. Apertou tanto que chegou a roxear o anelar.

No hospital, uma outra enfermeira entrou no quarto. Dependurou uma medicação em um suporte ao lado. Uma picada no braço direito fez com que Vanessa despertasse, uma lágrima escorreu pelo seu rosto, odiava picadas. A lembrança da queda lhe veio à cabeça. Parecia real. A marca roxa do anel no anelar confirmou.

A mãe já estava no quarto. Sentada no sofá de pernas cruzadas, segurava o celular em uma das mãos, como algo precioso. Vanessa a ouviu pedir um horário para fazer as mãos e o cabelo, precisava fazer uma hidratação. Virou para o lado, fez careta, procurou pelo pai, deveria estar ocupado demais no trabalho.

Vanessa nunca tinha percebido como a voz de sua mãe a irritava. O lençol áspero lhe causou arrepio. Olhou para suas mãos, viu o roxo do anelar, desta vez sem o anel. A mãe desligou o telefone, foi até o banheiro, devia estar retocando a maquiagem.

Na frente da cama, um quadro dizia “Alto risco de queda”. Logo abaixo, aquele seu nome. E o sobrenome.

Por Anna Maria Mello

Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente. Paulistana, desde 2015 se dedica à literatura. Pós-graduada em Escrita Literária pelo Instituto Vera Cruz. É autora de três livros. Formada em História pela USP, Atualmente, mestranda da PUCSP em Crítica Literária. As letras transformaram sua vida e abriram novos caminhos.

A lata

A lata - Anna Maria Mello

Uma lata poderia ser muitas coisas. Nas primeiras semanas que cheguei a Porto Alegre, os dias eram iluminados. O sol parecia entrar pela cabeça, descendo pelo corpo, passando por todos os órgãos até chegar em cada célula. A bola alaranjada que sumia no Guaíba nos finais de tarde me aquecia. Era tudo novidade e isso me bastava. Faltava um lugar para me instalar. Na busca pela internet, encontrei um apartamento de frente para o rio. Depois de arrastar a mala pelos degraus de uma estreita escada, me jogar na cama com o corpo grudento, roupas molhadas de suor, abri a geladeira e constatei que precisava ir ao supermercado. Dentre as ofertas da prateleira abarrotada de mercadorias, decidi por um bom vinho, uma caixa de massa e duas latas de molho de tomate. Comi, lambendo os dedos. O que sobrou, guardei para o dia seguinte.

Durante a madrugada, acordei com ruídos vindos de uma avenida próxima. Breques de ônibus que precisavam de pastilhas novas, pessoas que gritavam saindo de uma balada, pelotão de exército comandado por toques de apito. Sem conseguir pregar o olho nas noites seguintes, bastaram alguns dias para que me mudasse. De lá, levei as roupas e uma lata de molho de tomate.

Na nova moradia, longe do Guaíba, o sol descia em meio aos prédios. Nas manhãs, ouvia o cantar de pássaros. O apartamento tinha móveis mais confortáveis, escolhidos a dedo pela proprietária. Mas nada tinha minha cara.

As noites eram mais difíceis. Pensava nas coisas que havia deixado para trás, em São Paulo. As filhas, os cachorros, os amigos. Deitada de barriga para cima, demorava a pegar no sono.  

Em algumas madrugadas, acordava molhada, com os olhos fixos na parede bege. Não reconhecia nenhum objeto. Por alguns minutos, não sabia onde estava.

Os dias da semana eram preenchidos por estudos e trabalho, livros que me levavam a lugares longínquos e, por vezes, inóspitos.

Em uma sexta-feira de maio, quando recebi a visita de minha filha, o sol já não brilhava tão forte, e as nuvens se agitavam formando tempestades. Júlia chegou animada para desbravar os pampas. Assim que entrou, foi logo dizendo:

– Nem parece sua casa, aqui combina mais comigo.

Ela tinha razão, mas não havia me dado conta. Estava na hora do almoço e resolvi fazer a macarronada, aquela tradicional da “mama”. Sabia que, assim, ela se sentiria em casa. De barriga cheia, nos atiramos na cama e juntas, tiramos um cochilo. Ao acordar, do quarto, entre as frestas de madeira que dividiam o único ambiente, pude ver a sombra de Julia na cozinha. Estava com algo nas mãos. 

– Mãe, vem cá. Que tal pintarmos essa lata?

Era uma boa ideia, faríamos algo juntas. Nessa hora, a panela já estava com água fervente. Mergulhei a lata. Encostei de relance a mão na tampa da panela. Senti arder. Olhei o mindinho; estava vermelho, mas não disse nada a Julia. 

Saímos para comprar tinta e outros apetrechos. No caminho, Julia contou de seu novo emprego na empresa de cosméticos, na área de Marketing. Estava animada, e eu feliz por vê-la tão bem.

De volta ao apartamento, começamos a pintar a lata. Meus dedos melecados de verde cobriam a bolha do mindinho. O cheiro de tinta tomou conta da sala. Abrimos as janelas e resolvemos sair para comer. No caminho, passamos por uma loja de artesanato. Julia olhou para um guardanapo estampado com cactos.

– Vai combinar com a lata.

– Sim, vai cobrir as imperfeiçoes da tinta. Vamos levá-lo.

Pegamos o pacote de guardanapos, um verniz, e voltamos  para casa. Dessa vez, foi Júlia que quis aplicá-lo. Observei como deslizava os dedos sobre as nervuras, seus dedos preenchendo os espaços vazios. Deixou em cima da pia para secar. Voltou depois de um tempo para reaplicar outra camada, enquanto eu ajudava com as malas. Era hora de sua partida. 

Durante a noite, o cheiro não incomodou. Mesmo assim, abri a janela para circular o ar. No celular, mensagem de Julia, dizendo ter chegado bem. Encostei no travesseiro e dormi.

No dia seguinte, a lata já estava seca. Posicionei-a na escrivaninha ao lado de uma pilha de livros. Peguei o lápis com o qual estava escrevendo e coloquei dentro. Admirei-a por alguns segundos. Como havia sido bom o final de semana.

O semestre passou rápido. Ganhei outros lápis, borrachas e canetas. 

Resolvi fazer uma macarronada. Dessa vez, seria para os amigos. Arrumei a casa. Em cima da escrivaninha, bem do lado das pilhas de livros, ajeitei a lata.

Texto produzido na Oficina de Escrita de Não-Ficção do Prof. Dr. Fred Linardi

Por Anna Maria Mello

A onda

A onda - Anna Maria Mello

Com os olhos fixos no mar, estava sentada de pernas esparramadas e pés enterrados na areia. Entre as mãos, um pequeno balde plástico furta-cor. No pescoço, um reluzente crucifixo, presente de sua mãe na primeira eucaristia. Havia completado 11 anos e sabia falar na internet sem gaguejar. Tinha ideias de adulto. 

Se levantou. Chacoalhou os pés, jogou o pequeno balde no chão e foi em direção à mãe.

– Natalia, quero fazer uma tattoo
– Quer o quê?
– Fazer uma tattoo – repetiu revirando os olhos.
– Isso é coisa do demônio.

 Estava de boca aberta. Resolveu ganhar tempo.

– O que você quer tatuar? 
– Uma onda.
– Se você fizer, vai doer.

Carol estava decidida. Bateu o pé no chão e com o dedo apontou o local.

– As crianças de hoje querem cada coisa – disse a mãe em voz alta. Não sabia nem o que era tatuagem. Pegava jacaré nas ondas com uma prancha de isopor.
– Você sabia que tatuagem dói?
– Dói nada.

Natália desistiu, pegou seu livro na cadeira ao lado. Mergulhou nas páginas afastou-se da filha.

Carol deu as costas para mãe e foi em direção ao mar. Colocou os pés na água que batia em seu tornozelo. Andou alguns metros. A água respingou em sua barriga e peito. Veio uma onda que a tragou.

Quando Carol acordou, estava na areia, nos braços de Pedro, o vizinho da casa da frente. A seu lado, uma prancha escrita “New Wave”.

A mãe respirava ofegante. 

 – Que susto. Falei que não era para ir no fundo.

Carol tinha os olhos em Pedro. Não havia percebido o quanto ele era musculoso.  Ele perguntou se ela estava melhor, se podia levá-la para casa. Ela balançou a cabeça de modo afirmativo.

À noite, já na cama com sua mãe, voltou a pensar na tatuagem. Agora faria duas. Olhou para seu braço esquerdo, imaginando como ficaria o nome de Pedro tatuado ali. 

Texto produzido na Oficina de Escrita Criativa do Prof. Dr. Antônio de Assis Brasil

Por Anna Maria Mello