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dezembro 2022

Uma carta sem resposta

Uma carta sem resposta

Para Bertha que sempre será querida.

Não escrevo para lhe pedir perdão, mas para perdoar a mim mesma. Um dia se propuser a lê-la, talvez surpreenda com minhas confissões .O que cabe à mim é esse momento da escrita, o que vem depois não me interessa. Na ocasião do rompimento de nossa amizade, buscava no Diego, algo que faltava em mim. Nada me satisfazia, ao ponto de não discernir o que era certo. Havia me transformado em alguém obcecada por reconstruir uma família .Sabe daquelas de contos de fada.

Na época que nos conhecemos erámos muito parecidas, ambas recém separadas, o que queríamos eram momentos de distração. O objetivo era qualquer coisa que nos tirasse da rotina. Complementávamos como, cama e cobertor, vaso e flor, vestido decotado e peitos abundantes. Seus gostos se tornaram os meus, sua casa era a minha e a minha a sua, tínhamos uma a outra, como irmãs gêmeas ligadas a mesma placenta. Acreditava que nunca iriamos nos separar. Erámos o sagrado como mães, protegíamos ferozes nossos lares,e o profano nos labirintos das madrugadas. Aos poucos, independente de nossos parceiros, criamos uma cumplicidade. Trocávamos confidencias e falávamos de outras pessoas como se focemos o centro do universo. Eu mais do que você. Naquela época antes de atender seus telefonemas já sabia que era hora da fofoca.Com o passar dos anos fui perdendo a alegria e o desejo da diversão. Não fui honesta para lhe dizer, o que se passava comigo. Naquele momento o medo de perdê-la era maior. Na carreira, escolhas do passado assombravam. Amargurava ter sido abandonada por pais biológicos Dizia estar bem, quando perguntava a respeito. Com a morte da mãe que me criou, a situação agravou. Rompeu-se o elo que unia minha irmã, marido e família. Apesar de você não tê-la conhecido, era para mim o reflexo distorcido desse elo, Formou-se um paradoxo. O vazio transformou meus dias em um tapete eu uma cópia barata de Penelope. Sobre isso nunca falei. Queria transparecer leve, descongestionada, enquanto nas veias o sangue cristaliza. Criou-se um espaço onde Diego pode me puxar para além da correnteza em um mar que a tempo vinha engolindo água me deixando ser tragada até naufragar.

O traço de minha escrita é o resultado dessas veias. Nesse momento que assino, já não pertenço ao corpo que compartilha as nossas lembranças. A cada palavra os contornos das letras pulsão expurgando o não dito. O corpo dobra-se sobre o papel como se quisesse depositar sobre ele o peso do tempo que não volta mais. E a ele só cabe a memória.

São Paulo, 20 de novembro de 2015.

Por Anna Maria Mello

Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente. Paulistana, desde 2015 se dedica à literatura. Pós-graduada em Escrita Literária pelo Instituto Vera Cruz. É autora de três livros. Formada em História pela USP, Atualmente, mestranda da PUCSP em Crítica Literária. As letras transformaram sua vida e abriram novos caminhos.

Um nome qualquer

Poderia se chamar Júlia, Laura, Luísa, qualquer um desses nomes comuns que se repetem na lista de presença do colégio. Chamava-se Vanessa. Soava mal aos ouvidos, e isso a irritava. Uma vez ouviu que Vanessa parecia nome de puta, dessas que põem nome falso na internet. Retrucou, apesar de ser uma daquelas garotas de pouca fala, de cara esbranquiçada por nunca tomar sol. Nos dias nublados, os ventos vindos do mar eram a única coisa que lhe trazia paz. Ainda bem que morava perto da praia. Não parecia muito inteligente, nem boba demais. Apesar de os colegas a verem todos os dias no colégio, em outro lugar era possível que não a reconhecessem. Tampouco suas roupas se destacavam. Sempre vestia uma camiseta, que poderia ser a mesma, e um jeans, daqueles que nem rasgo tinham. As notas serviam só para passar de ano. Ninguém sentia sua ausência.

Em casa, as brigas entre seus pais eram uma constante. Vanessa não se importava mais com os conflitos do casal. Refugiava-se em seu quarto e isso lhe bastava. A mãe havia desistido de fazê-la comer. Apesar de estar magra demais e de sua aparência cadavérica. O pai chegava sempre depois das dez horas da noite, sequer percebia que ela há dias não se sentava à mesa do jantar.

Até que em uma manhã, durante a aula de Literatura, enquanto a professora lia um trecho de o Alienista, Vanessa caiu no chão, rígida, com os braços colados ao dorso, pernas trepidantes, olhos revirados. Uma espuma lhe saia pela boca. Uma das colegas veio depressa em sua direção.

– Segura a língua dela – gritou Luísa.

– O que é tá rolando? – berrou Helena.

– Ela desmaiou. – respondeu Edu.

Luísa afastou as amigas com os braços. A professora tentou acalmar a classe. Em seguida, correu em direção a Vanessa. Segurou firme sua cabeça, apoiando-a em uma mão; com a outra, agarrou a língua. A professora pediu ajuda. Mandou um aluno correr na enfermaria. Não foi necessário. A gritaria chamou a atenção da enfermeira, que logo apareceu. Um resto de baba escorreu pelo canto da boca e molhou a gola da camiseta de Vanessa. A enfermeira levantou a cabeça da menina pela nuca, enquanto a professora limpava sua baba. Alguns segundos depois, o corpo já estava relaxado sobre o chão. Aos poucos, ela voltou a respirar. O ar com odor desagradável embrulhou o estômago de Vanessa e a deixou mais pálida do que antes.

– Melhor avisar os pais, temos que levá-la ao hospital – disse a professora.

Vanessa, ainda tonta, percebeu que a professora estava ao seu lado. A ambulância demorou a chegar. Saiu da sala amparada pela professora e pela enfermeira do colégio. As duas ajudaram a coloca-la em uma maca, enquanto o enfermeiro da ambulância tomava a frente da situação. Vanessa, meio tonta, já deitada na maca, apertou o anel de pedra que tinha ganho de seu pai nos seus quinze anos, recém feitos. Apertou tanto que chegou a roxear o anelar.

No hospital, uma outra enfermeira entrou no quarto. Dependurou uma medicação em um suporte ao lado. Uma picada no braço direito fez com que Vanessa despertasse, uma lágrima escorreu pelo seu rosto, odiava picadas. A lembrança da queda lhe veio à cabeça. Parecia real. A marca roxa do anel no anelar confirmou.

A mãe já estava no quarto. Sentada no sofá de pernas cruzadas, segurava o celular em uma das mãos, como algo precioso. Vanessa a ouviu pedir um horário para fazer as mãos e o cabelo, precisava fazer uma hidratação. Virou para o lado, fez careta, procurou pelo pai, deveria estar ocupado demais no trabalho.

Vanessa nunca tinha percebido como a voz de sua mãe a irritava. O lençol áspero lhe causou arrepio. Olhou para suas mãos, viu o roxo do anelar, desta vez sem o anel. A mãe desligou o telefone, foi até o banheiro, devia estar retocando a maquiagem.

Na frente da cama, um quadro dizia “Alto risco de queda”. Logo abaixo, aquele seu nome. E o sobrenome.

Por Anna Maria Mello

Anna Maria Mello é amante da escrita desde que se entende por gente. Paulistana, desde 2015 se dedica à literatura. Pós-graduada em Escrita Literária pelo Instituto Vera Cruz. É autora de três livros. Formada em História pela USP, Atualmente, mestranda da PUCSP em Crítica Literária. As letras transformaram sua vida e abriram novos caminhos.